sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O tempo não para

Apesar de noveleiro, tem sido pequeno o número de novelas que tenho acompanhado nos últimos tempos. E entre as poucas novelas que tenho visto, tem me chamado a atenção a nova do horário das sete da Globo: “O Tempo Não Para”, de Mario Teixeira e Leonardo Nogueira tendo também como roteiristas Bíbi Da Pieve, Tarcísio Lara Puiati e Marcos Lazarini.

Houve muita zoeira em relação a trama. Elas incluíram comparações com Titanic e a inusitada trama de uma família congelada no século XIX e que acorda em 2018. E eu também fiquei um tanto pé atrás , pois, diferente da novela que a antecedeu, Deus Salve o Rei, ela tinha um número maior de personagens pretas, mas fazendo papel de escravizados por Dom Sabino. Nada novo até aqui. No entanto algumas falas têm me chamado a atenção.

Em um dos capítulos, Marocas( Juliana Paiva) e Samuca (Nicolas Prates)  estão no terraço externo do apartamento dele. Em certo momento, eles tentam voltar para dentro, mas são impedidos, pois uma falha nos computadores do prédio acaba deixando a porta trancada e, assim, eles teriam que esperar o sistema voltar ao normal para abrí-la. Dom Sabino (Edson Celulari) tenta esmurrar a porta blindada, mas sem sucesso. Em dado momento Marocas diz a Samuca: “que tempo é esse em que és senhor em sua própria casa”.

A família Sabino Machado é do final do século XIX, de um Brasil agrário. Três décadas antes do naufrágio deles, D Pedro II decretou a lei de terras, que as colocou como algo privado e impediu o acesso dos mais pobres a propriedade agrária. Essa decisão, dada no contexto em que o capitalismo ainda está se desenvolvendo no Brasil, logo após a proibição do tráfico de escravizados, está na raiz da nossa concentração fundiária. E uma das tramas da novela é justamente o fato da família querer suas terras de volta, depois de mais de um século.

No século XXI nos é apresentada uma São Paulo ligada ao atual momento do capitalismo, o que alguns autores chamam de “Terceira Revolução Industrial”. Samuca é dono de uma holding chamada SamVita que é referência em sustentabilidade. Se as atividades, como a de Dom Sabino, marcam a exploração da terra em larga escala e destruição do meio ambiente - agravada ao longo do século XX - a de  Samuca representa a “modernidade”, em que o capitalismo se apropria do discurso ecológico e tenta, como é seu objetivo, ter lucro com isso. E para manter a caracterização da personagem com tal modernidade, não é de se estranhar que ele viva em um condomínio em que as fechaduras são automatizadas.

No entanto a pergunta de Marocas (não és senhor em sua própria casa?) vai mais além da mudança no estilo de vida daqueles que estão em posição de poder, cada um em seu tempo. Se por um lado ela e sua família perdem o centro das coisas por estar em um mundo completamente diferente do que viviam, a protagonista aponta que parte de nós, em meio a tanta tecnologia, também não somos tão donos de nossas vidas ou livres como gostaríamos ou como pretendeu o próprio sistema capitalista.

Há outros pontos interessantes em discussão.. Em outro momento Marocas reclama do assédio sofrido por Samuca e diz que ela está acostumada com rapazes a cortejando e não roubando-lhe beijos. É quando Carmem (Christiane Torloni), mãe do protagonista, lhe diz que ela não é antiquada e que a sua forma de pensar é bem moderna. Isso é uma forma de lembrar o fato de que, em pleno século XXI, as mulheres ainda precisam se livrar de assédio sofrido pelos homens, e no quanto o consentimento é algo óbvio e necessário. Isso torna Marocas atual.

Existem ainda outras cenas que mostra esse contraste entre o que é antigo e moderno. Dom Sabino, reparando na situação econômica em que se encontra Eliseu (Milton Gonçalves), mesmo após mais de cem anos de Lei Áurea. Nesse sentido, Agustina (Rosi Campos), esposa de Dom Sabino fica assustada ao saber da abolição e imediatamente diz que merece ser indenizada pelo fato de não possuir mais escravos. A fala de Augustina é perversamente atual, pois mostra como grupos sempre privilegiados se sentem prejudicados quando grupos explorados por eles conseguem direitos mínimos e necessários. A personagem de Rosi Campos querendo indenização é o cara branco que esperneia contra cotas raciais, o queridão que diz que direitos trabalhistas atrapalham o desenvolvimento econômico, ou o cis hetero que acha privilégio uma lei que criminalize os homicídios motivados por gênero e/ou orientação sexual.

O que é mais interessante na trama é a forma como as personagens do século XIX são trazidas para o século XX. Essa forma mostra que a história não é linear. Na época do naufrágio dos Sabino Machado, despontava o positivismo e sua noção de uma história linear e progressiva. O século XXI da trama - e da vida real- mostra que a linha do tempo não é reta e nela contém todas as nossas contradições, sejam elas econômicas, raciais ou de gênero, entre tantas outras. E não somos completamente senhores em nossa própria casa, tampouco em nosso próprio tempo.

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