sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O tempo não para

Apesar de noveleiro, tem sido pequeno o número de novelas que tenho acompanhado nos últimos tempos. E entre as poucas novelas que tenho visto, tem me chamado a atenção a nova do horário das sete da Globo: “O Tempo Não Para”, de Mario Teixeira e Leonardo Nogueira tendo também como roteiristas Bíbi Da Pieve, Tarcísio Lara Puiati e Marcos Lazarini.

Houve muita zoeira em relação a trama. Elas incluíram comparações com Titanic e a inusitada trama de uma família congelada no século XIX e que acorda em 2018. E eu também fiquei um tanto pé atrás , pois, diferente da novela que a antecedeu, Deus Salve o Rei, ela tinha um número maior de personagens pretas, mas fazendo papel de escravizados por Dom Sabino. Nada novo até aqui. No entanto algumas falas têm me chamado a atenção.

Em um dos capítulos, Marocas( Juliana Paiva) e Samuca (Nicolas Prates)  estão no terraço externo do apartamento dele. Em certo momento, eles tentam voltar para dentro, mas são impedidos, pois uma falha nos computadores do prédio acaba deixando a porta trancada e, assim, eles teriam que esperar o sistema voltar ao normal para abrí-la. Dom Sabino (Edson Celulari) tenta esmurrar a porta blindada, mas sem sucesso. Em dado momento Marocas diz a Samuca: “que tempo é esse em que és senhor em sua própria casa”.

A família Sabino Machado é do final do século XIX, de um Brasil agrário. Três décadas antes do naufrágio deles, D Pedro II decretou a lei de terras, que as colocou como algo privado e impediu o acesso dos mais pobres a propriedade agrária. Essa decisão, dada no contexto em que o capitalismo ainda está se desenvolvendo no Brasil, logo após a proibição do tráfico de escravizados, está na raiz da nossa concentração fundiária. E uma das tramas da novela é justamente o fato da família querer suas terras de volta, depois de mais de um século.

No século XXI nos é apresentada uma São Paulo ligada ao atual momento do capitalismo, o que alguns autores chamam de “Terceira Revolução Industrial”. Samuca é dono de uma holding chamada SamVita que é referência em sustentabilidade. Se as atividades, como a de Dom Sabino, marcam a exploração da terra em larga escala e destruição do meio ambiente - agravada ao longo do século XX - a de  Samuca representa a “modernidade”, em que o capitalismo se apropria do discurso ecológico e tenta, como é seu objetivo, ter lucro com isso. E para manter a caracterização da personagem com tal modernidade, não é de se estranhar que ele viva em um condomínio em que as fechaduras são automatizadas.

No entanto a pergunta de Marocas (não és senhor em sua própria casa?) vai mais além da mudança no estilo de vida daqueles que estão em posição de poder, cada um em seu tempo. Se por um lado ela e sua família perdem o centro das coisas por estar em um mundo completamente diferente do que viviam, a protagonista aponta que parte de nós, em meio a tanta tecnologia, também não somos tão donos de nossas vidas ou livres como gostaríamos ou como pretendeu o próprio sistema capitalista.

Há outros pontos interessantes em discussão.. Em outro momento Marocas reclama do assédio sofrido por Samuca e diz que ela está acostumada com rapazes a cortejando e não roubando-lhe beijos. É quando Carmem (Christiane Torloni), mãe do protagonista, lhe diz que ela não é antiquada e que a sua forma de pensar é bem moderna. Isso é uma forma de lembrar o fato de que, em pleno século XXI, as mulheres ainda precisam se livrar de assédio sofrido pelos homens, e no quanto o consentimento é algo óbvio e necessário. Isso torna Marocas atual.

Existem ainda outras cenas que mostra esse contraste entre o que é antigo e moderno. Dom Sabino, reparando na situação econômica em que se encontra Eliseu (Milton Gonçalves), mesmo após mais de cem anos de Lei Áurea. Nesse sentido, Agustina (Rosi Campos), esposa de Dom Sabino fica assustada ao saber da abolição e imediatamente diz que merece ser indenizada pelo fato de não possuir mais escravos. A fala de Augustina é perversamente atual, pois mostra como grupos sempre privilegiados se sentem prejudicados quando grupos explorados por eles conseguem direitos mínimos e necessários. A personagem de Rosi Campos querendo indenização é o cara branco que esperneia contra cotas raciais, o queridão que diz que direitos trabalhistas atrapalham o desenvolvimento econômico, ou o cis hetero que acha privilégio uma lei que criminalize os homicídios motivados por gênero e/ou orientação sexual.

O que é mais interessante na trama é a forma como as personagens do século XIX são trazidas para o século XX. Essa forma mostra que a história não é linear. Na época do naufrágio dos Sabino Machado, despontava o positivismo e sua noção de uma história linear e progressiva. O século XXI da trama - e da vida real- mostra que a linha do tempo não é reta e nela contém todas as nossas contradições, sejam elas econômicas, raciais ou de gênero, entre tantas outras. E não somos completamente senhores em nossa própria casa, tampouco em nosso próprio tempo.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O psicodrama como questionamento

Há muito tempo ando com um pensamento e devo ter  repetido várias vezes em outros textos: tão importante quanto fortalecer os grupos minoritários, é fundamental questionar aqueles que têm o poder, partindo do princípio de que eles não devem ditar as normas e nem ser vistos como a única realidade. E além disso, questionar as próprias normas em si.

Esse texto maravilhoso do Túllio, que parte de uma experiência pessoal, me fez pensar novamente nisso. E também em como determinadas narrativas de grupos minoritários acabam por vezes contadas por aqueles que detém privilégios.

Para citar um exemplo, eu me lembrei de uma treta que rolou em relação a um episódio de “Orange is The New Black”. Eu nunca assisti à série, mas sei que ela é aclamada por questões de representatividade racial e conta com uma atriz trans. Só que em um episódio, parece que uma personagem negra diz que os maiores racistas são os próprios negros. Então, alguns contatos de redes sociais, negros americanos, lembraram do fato de que a equipe de roteiristas da série era formada inteiramente por pessoas brancas. Um psicodrama que não deu certo.

Uma das experiências mais interessantes que tive foi conhecer o trabalho da Laurice Levy que me apresentou melhor o psicodrama de Moreno. Para quem não conhece, é uma terapia na qual a pessoa pode “interpretar” outras pessoas como forma de abertura emocional, o famoso “se colocar no lugar do outro”. Eu, por exemplo, já usei a técnica em sociodramas em oficinas com jovens, nas quais eles representam outros papéis da sua realidade como forma de abrir uma discussão sobre um certo tema e tive ótimos resultados.

Daí penso o quanto podemos inverter essa lógica, ocupando outros lugares em um outro psicodrama, diferente das interpretações ao estilo da série citada. Sendo assim, tão importante que negros falem sobre si mesmos, é fundamental também tomar determinados espaços dominados por brancos e questionar a branquitude como nornalidade. Vale também para lésbicas, gays e bissexuais em relação a heterossexualidade, pans e bissexuais para a monossexualidade, trans para cissexualidade e por aí vai. Assim os discursos além de ganharem força, ganham multiplicidade e isso enriquece as nossas visões e ajuda no fortalecimento daqueles grupos que se encontram em situação de subalternidade. E também, ao perceber essa multiplicidade, quebrando com certas normatividades, podemos ter mais liberdade e não mimetizá-la, como ocorre com gays heteronormativos, pretos que endeusam a branquitude e outros casos do tipo.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Me chame pelo seu nome


O Wesley tinha me passado uma resenha em forma de vídeo sobre “Me Chame Pelo Seu Nome” e ao conversarmos sobre, ele sugeriu que eu visse o filme. Eu já tinha visto algo por alto, em especial críticas apontando ser um filme que aborda uma relação entre dois homens, porém sob uma ótica gente rica e branca. De qualquer forma, resolvi ver o filme, mas antes me lembrei de que ele era baseado em um livro, escrito por André Aciman. Então decidi lê-lo antes de ver o filme.

A partir de leitura, resolvi colocar aqui algumas impressões a respeito, dividindo a minha análise em quatros aspectos que me chamaram a atenção. Por vezes acho que farei uma resenha crítica toda bonitinha, mas acaba sendo um texto mais informal e ao mesmo tempo com “spoilers” sobre o conteúdo. Então tá dado o aviso.

Eis a trama: Em algum lugar da Itália nos anos 80 somos apresentados a Elio, rapaz de 17 anos, filho de um professor universitário, que mora na Itália com sua mãe e seu pai, além do motorista, da empregada siciliana e do jardineiro. Nos verões, o pai costuma receber estudantes estrangeiros para passarem a temporada no belo casarão deles em trocando a hospedagem por algumas horas auxiliando o pai de Elio a organizar os papéis. Em um desses verões chega Oliver, um estudante americano de 24 anos, que desperta o desejo de Elio.

A trama é narrada em primeira pessoa no forma do narrador-personagem. Foi uma escolha acertada de Aciman pois, ao mesmo tempo em que a trama corre em tempo cronológico, em vários momentos somos transportados para o espaço e tempo psicológicos de Elio, uma vez que mostra de que maneira o seu desejo adolescente o atinge emocionalmente, bem como suas impressões sobre o que está a sua volta, com foco em Oliver. A partir daí pude observar como o autor faz um jogo de espelhos ao mesmo tempo em que Elio busca unidade, mostra de como a sexualidade dele se manifesta e coloca ideias de Heráclito na trama.

1. A ideia de unidade

Ao mesmo tempo em que Elio se apaixona por Oliver, somos apresentados àquela reguião da Itália, seja nos passeios de Elio com o estudante americano, seja sozinho ou na interação com os amigos que vivem ali. E, na medida em que esse sentimento cresce, vamos percebendo a ideia de amor como uma unidade e, ao mesmo tempo, como um complemento e um espelho, na expectativa de que o ser amado seja exatamente da forma como o desejo de Oliver coloca as coisas. Esse trecho aqui evidencia isso:

“Eu gostava de como nossas mentes pareciam caminhar lado a lado, como adivinhávamos de imediato as palavras que o outro queria usar, mesmo que desistisse no último instante”

Elio e Oliver são judeus, assim como André Aciman. Ele usa a história do povo judeu como uma metáfora para o desejo sexual de Elio, bem como essa ideia de unidade, como pode ser percebido aqui, quando Elio imagina como é o pênis de Oliver:

“...tentando imaginar contorno daquilo que nos irmanava no deserto”.

Aqui cabe a lembrar que no judaísmo a circuncisão peniana do bebê - tal como Abraão fez com Isaque- é uma forma de aliança com Deus.

Outro trecho, que mostra essa ideia do amor como uma unidade e correspondendo a todas as expectativas também se encontra aqui:

“Existe uma lei em algum lugar que diz que, quando uma pessoa está completamente apaixonada pela outra, a outra deve inevitavelmente se apaixonar também. Amor ch’a null’anato amar persona. Amor, que nenhum amado amar perdoa, palavras de Francesa no Inferno.”

Vi que esse trecho faz referência à “A Divina Comédia”. Por isso fui dar uma olhada em quem era Francesca de Rimini. Entre outras coisas, descritas por Dante, ela era uma nobre que foi prometida a Giovanni Malatesta. No entanto, ela se casa por procuração pelo irmão dele, Paolo, que era bem mais bonito que Giovanni. Francesca se apaixona pelo cunhado e em parte tendo como plano de fundo a trama amorosa de Guinevere e Lancelot e, ao serem descobertos por Giovanni, são mortos. Essa presença da literatura como suporte em relacionamentos aparece nas conversas de Elio com Oliver e, mais notadamente, com Marzia, já que em dado momento ele lhe dá um livro de poesias.

Outro momento em que esse jogo de espelhos é colocado, até de forma jocosa, é quando Elio recebe a visita de um casal gay de Chicago em sua casa. Ele coloca o apelido de Dupond e Dupont (referência aos personagens “gêmeos” de Tintim). Em dado momento ele usa a forma “Dupondt”, como o nome é usado quando se refere aos dois ao mesmo tempo. Aqui essa união pode ganhar outro sentido, essa unidade.

2. Gênero e bissexualidade

Não há, no texto, uma clara identificação da orientação sexual de Elio e Oliver. Nesse sentido cabe melhor dizer sobre um comportamento bissexual das personagens do que, necessariamente, uma identidade bissexual.

O que achei muito interessante e positivo, diferente de outras abordagens de bissexualidade masculina, o relacionamento de Elio com outras mulheres, em especial Marzia, não é visto como uma desculpa para mascarar uma suposta homossexualidade ou mostrar uma pessoa confusa, que é uma das formas que a bifobia se manifesta. Elio realmente se interessa e tem tesão por Marzia.

Por outro lado há uma forte idealização machista e heteronormativa. Aqui eu preciso me lembrar de um antigo texto do Júlio Nascimento, psicanalista que escrevia para o site Mix Brasil, respondendo email mandado por leitores, lá no fim dos anos 90 e começo do anos 2000 e me lembro também do meu primeiro namoro, que foi com um homem bissexual.

Nesse texto específico que me lembrei do site, um rapaz tinha mandado um email falandof do desejo que ele tinha de transar com outros homens, mas que o acordo que tinha com o namorado o impedia de fazer isso. E, sendo ambos bissexuais, havia um acordo em que caso transasse com mulheres isso não seria considerada uma traição. Rolou uma identificação porque era a mesma ideia que o meu namorado da época também tinha.

Na resposta, o psicanalista mencionou uma questão fálica, pois na construção deles as mulheres, não tendo falo, não representariam uma ameaça. Passados 18 anos depois, acho essa análise um tanto tosca e prefiro observar que a mulher é colocada como não representando uma “ameaça” pelo fato de ter sua sexualidade diminuída frente a masculina. Nesse sentido pode-se até recuperar a ideia de falocentrismo.

Essas lembranças me vieram no momento em que percebi esse comportamento em Elio. Há momentos na trama em que ele imagina Oliver com outras mulheres e isso não lhe causa ciúmes, muito pelo contrário, pra ele é algo prazeroso. Em outros momentos ele mostra que não tem a mesma ideia quando imagina a possibilidade de Oliver com outros homens, aqui nas palavras do próprio Elio explicando:

“Nunca me ocorreu esconder de Oliver o que eu fazia com Marzia. Padeiros e açougueiros não competem, eu pensava. Nem ele, provavelmente, se importaria com a questão.”

Outra representação desse machismo pode ser evidenciada nesse trecho, após Elio observar Oliver em companhia de belas mulheres:

“Parecia que tinha encontrado as duas no caminho para a livraria e estava trazendo uma para ele e a outra para mim. Se l’amore”

Por outro lado isso me lembra como homens gays cis podem observar os homens bissexuais como homens indecisos e como “gays no armário”, ideia que passa longe do livro de Aciman. Por outro lado já ouvi de homens cis gays e bissexuais curtirem homens bissexuais por acharem que o fato deles transarem com mulheres o tornam “mais homens” que homens gays. Essa idealização machista também é notada em muitas reflexões de Elio.

3. O pêssego

Essa fruta é quase uma personagem, não está presente à por um acaso na obra. Ela aparece em vários momentos, mas aqui destaco dois. O primeiro é quando Oliver e o pai de Elio discutem sobre a etimologia da palavra pêssego. O segundo é quando Oliver engole o pêssego com o sêmen de Elio.

Ao falar da origem do significado da palavra com o pai de Elio, Oliver aponta que a origem da palavra “pêssego” é “precoce”. Essas duas observações, de unidade e precocidade são interessantes. A segunda situação acontece no mesmo dia em que eles decidem um chamar pelo nome do outro. .

No Ocidente a adolescência é uma fase de indefinição e crise por conta da falta de rituais que marcam a transição da infância para a idade adulta.

Ao analisar a relação entre homens mais velhos com homens mais novos, o psicólogo junguiano Robert Hopcke aponta que as tais relações não se dão por uma questão “edipiana”, como poderiam apontar os freudianos. Em uma sociedade heteronormativa sem rituais de iniciação para rapazes homossexuais (e aqui posso incluir os bissexuais), a relação com a pessoa mais velha, que já passou por esse processo seria uma forma de poder estar no mundo e viver a sua sexualidade. A relação “puer-senex” é então uma forma de substituição da ausência de rituais.

Nesse sentido Elio é um adolescente em relação com outro homem e a cena do pêssego mostra um tanto dessa ritualização e incorporação. Eu me lembro do ritual de iniciação dos jovens Sambia de Papua Nova Guiné, que ingerem o sêmen dos mais velhos como purificação e forma de adquirir masculinidade, não cabendo aqui apontar homo ou bissexualidade, pois seria etnocentrismo.

Aqui reaparece  a noção de incorporação e de unidade. O título aponta que Elio está em Oliver e vice-versa. O pêssego, de certa forma, repete essa mesma ideia.

Por outro lado há questão da “precocidade” de Elio, o que faz um elo com e etimologia apresentada por Oliver. É apresentado como um rapaz maduro para quem tem 17 anos. E esse foi um ponto usado pelos defensores de Aciman quando surgiram acusações dele romantizar um romance entre um adulto e um adolescente menor de idade. São argumentos parecidos usados para meninas adolescentes, que são vistas como “maduras” como forma de justificar relações com homens mais velhos, maiores de idade, o que é extremamente problemático. Nesse sentido, usar esse argumento para a defesa do autor do livro é péssimo.

4. Elio e Oliver em Roma, a Síndrome de São Clemente e o papel do pai

Elio e Oliver vão sozinhos para Roma, bancados pelo pai do adolescente. Lá Elio reecontra Alfredo, um poeta que ele conhecera com Marzia na livraria de sua cidade, em um evento no qual Oliver fora convidado.

 Alfredo começa a fazer um discurso e fala sobre a Síndrome de São Clemente, que se assemelha muito com a ideia da mudança das coisas já apontadas por Heráclito, um pré socrático que é estudado por Oliver.

Interessante é o fato do poeta fazer uma citação a Nietzsche, defensor dos pré socráticos e crítico de Sócrates, que traz a ideia de unidade e de uma explicação total para as coisas. Ao comentar a síndrome, diz o poeta:

“Como o subconsciente, o amor, como a memória, como o próprio tempo, como cada um de nós, a igreja foi construída sobre as ruínas de restaurações subsequentes, não há fundo definitivo, não há o primeiro de nada, apenas camadas e passagens secretas e câmaras interligadas, como as catacumbas cristãs e, logo ao lado, uma catacumba judaica. Mas, como diria Nietzsche, meus amigos, eu lhes dei a moral antes do conto”.

Aqui me lembro de quando Nietzsche fala da importância do caminho antes de chegar no objetivo final da viagem. Do subir a montanha, exercício cansativo e dolorido, mas que nos alerta de que estamos vivos, mais importante que a chegada no topo dela em si. E o poeta Alfredo acaba invertendo a ordem das coisas ao trazer a ideia pronta (a moral, o topo da montanha) antes do acontecido em si ( a subida, o conto) .

Aliás a história narrada por Alfredo - carregada por uma visão eurocêntrica e racista em relação à Tailândia, por ver como lugar exótico- fala justamente do encontro dele com uma pessoa que trabalha no hotel que por um momento ele vê como homem e em outro momento como mulher, quebrando com a ideia de unidade.

Voltando à síndrome de São Clemente, em que há a passagem das coisas, existem na obras elementos que evidenciam essa ideia: o fato de Elio ter o mesmo nome do avô (dois Elios sendo pessoas e tempos diferentes), a mudança que os quartos de Elio avô e Elio neto passam durante o verão e o cartão postal datado do começo do século XX que fica no quarto de Elio e que no decorrer da trama ganha novos significados. Essas mudanças ilustram bem o que essa análise que a Isabella Lubrano fez do livro e que recomendo ser vista. A própria relação e os reencontros de Elio e Oliver em tempos diferentes mostram bem essa ideia de não permanência.

No retorno de Elio a sua cidade, o  pai já tem ideia do que acontece entre os dois. Nesse sentido, o papel do pai me lembra outro romance: “Amar, Verbo Intransitivo” do Mário de Andrade.

Basicamente, a obra de Andrade fala da iniciação sexual de Carlos, cujo pai, um homem da burguesia paulistana (curiosamente a mesma classe social de Elio) contrata uma empregada alemã de 35 anos, Elza, para a sua iniciação sexual e evitar que ele faça isso em prostíbulos. Em uma análise que li do livro (esqueci quem era a autora) ela apontava a existência de uma mediação (no caso o pai), ainda que questionável, na iniciação sexual do filho. Assim, fico pensando no pai de Elio também como esse mediador.

E aqui acho interessante a presença do pai, que em outros momentos da obra, usa de método socrático quando quer saber de certas coisas. Em uma conversa com Elio ele mostra saber da relação do filho com Oliver em um dos momentos mais bonitos - se não o mais- da narrativa:

“No seu lugar, se houver dor, cuide dela, e se houver uma chama, não a apague, não seja bruto com ela. Arrancamos tanto de nós mesmos para nos curarmos das coisas mais rápido do que deveríamos, que declaramos falência antes mesmo dos trinta e temos menos a oferecer a cada vez que iniciamos algo com alguém novo. A abstinência pode ser uma coisa terrível, quando não nos deixa dormir à noite, e ver que as pessoas nos esqueceram antes do que gostaríamos de ser esquecidos não é uma sensação melhor. Mas não sentir nada para não sentir alguma coisa...que desperdício! Eu não consegui nem começar a absorver tudo aquilo (...) talvez tenha chegado perto, mas nunca tive o que vocês tiveram”

5. Pra terminar (#CríticaSocialFoda)

Confesso que foi uma leitura difícil, no sentido que levei dias para ler. Em dado momento, na primeira metade do livro, achei Elio um personagem muito chato e muitas vezes cafona e melodramático em suas observações e idealização de Oliver. No entanto me recordei da minha adolescência e me lembrei das minhas cafonices.

Muitas críticas apontam para o fato de ser uma trama com gente branca e rica. Não sei se isso é algo que desmereça a obra em si, mas analisar uma obra sem fazer recortes de gênero, classe social, raça e tudo o mais é, pra mim, tarefa impossível. Porém, Aciman é honesto no ambiente que ele quer mostrar, ainda que seja um universo com o qual eu, pessoalmente, não me identifique. Mas também é uma possibilidade da leitura transportar o leitor para outros mundos, sem que isso impeça de ter uma visão crítica sobre esse universo criado.

De qualquer forma isso não invalida as ideias que André Aciman quis colocar em sua obra, embora eu veja algumas delas como problemáticas. Na segunda metade do livro com Elio em Roma e o autor trazendo algumas das ideias já com o amadurecimento da personagem o livro já fica mais interessante. A ponto de eu ter que fazer essa resenha/análise tão grande e confesso que, as ideias contidas ali, mesmo em um contexto bem diferente da minha vida e permeado muitas vezes com descrições extremamente cafonas e cheias de clichês - poderia ser versão metida a besta de uma novela do Sílvio de Abreu na Itália- me trouxe ótimas reflexões sobre a não permanência das coisas, da passagem do tempo e de como podemos aproveitar isso.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Responsabilizar o outro?

Acordo hoje de manhã e o namorado me pergunta algo sobre um amigo em comum: “é verdade que ele tá apaixonado?” Eu: “ah, não. Ele disse que é o outro que está apaixonado e fica mandando mensagens”. Então ouço: é sempre os outros, a responsabilidade é sempre dos outros, nunca é da pessoa.

Durante o banho voltei no tempo, para algo que aconteceu há mais de dez anos. Estava em outra cidade, visitando um casal de amigos muito queridos. E eu fazia uma zoeira que quando algo considerado ofensivo eu dizia “vamos fazer uma oficina?”. Algo como o “desconstruir”, tão comum hoje, só que em tom jocoso. Me senti a vontade porque eu estava entre, como disse, pessoas queridas. Mas lá pelas tantas um deles me disse, em tom raivoso por conta de algo que ele disse e eu dei uma zoada: não, Odilon, é você que está precisando de uma oficina.

Não preciso dizer que graças a minha pouca capacidade de ouvir críticas e ao mesmo tempo por achar que a pessoa levou aquilo a sério demais fiquei quieto. Tentei murmurar algo, mas não saía nada da minha boca, porque eu não estava conseguindo processar o que eu tinha ouvido. Fiquei na minha, nunca mais fiz a tal brincadeira e tudo tem corrido bem de lá pra cá. Mas vira e mexe me pego pensando nesse episódio.

Nos últimos tempos tenho lido e acompanhado alguns vídeos falando sobre discussões de ideias, debates, argumentações e tudo o mais. E há uma premissa bem óbvia, mas que por vezes nos esquecemos, de que a pessoa responsável pelo que fala é a própria pessoa que diz e não aquele que está ouvindo. E em uma discussão saudável, se aquela pessoa que te ouviu fez uma má interpretação, é obrigação tua dizer de novo de modo que aquela ideia fique mais clara pro interlocutor. Entendo que em boa partes das discussões que vemos por aí estão a anos luz desse nível de entendimento, franqueza e generosidade. No entanto, é um caminho.

Acabei pensando sobre o sonho que tive nesta manhã. Só pra tentar ser sintético sobre o significado dele, num primeiro momento o sonho parecia uma forma de zoar a heteronormatividade de um rapaz com quem fiquei. Só que depois parei para pensar um pouco mais e me dei conta que ele ali era só uma alegoria. Que na verdade eu estava usando como escudo para esconder a minha própria heteronormatividade.

Obviamente, não se trata aqui de discutir uma necessidade de ser o “descontruído da galera”, de fazer uma espécie de penitência. Tampouco afirmar que estamos “imunes” a esses discursos. Até porque somos seres sociais e compartilhamos de códigos, valores e uma série de outras coisas em comum. A questão é o velho apontar o dedo para as outras pessoas e não observar a si mesmo.

Sendo assim penso na dificuldade de expor aquilo que se sente, como no rapaz alvo de uma paixão, do que se pensa, como o que aconteceu na outra cidade, ou o que se deseja, como na alegoria que o sonho me trouxe. O melhor então é, ao invés de apontar o dedo pro outro, guardar mágoa de um episódio tão antigo ou não assumir o próprio desejo, é verbalizar isso, admitir e seguir adiante.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Voo de planador



Eu tenho acompanhado essa última edição do BBB, que termina hoje. Uma das coisas que gosto de fazer é ver os comentários do pessoal da WebTVBrasileira, que tem como apresentadores Tati Martins e seu marido, Marcelo Carlos. Uma das várias atividades deste canal, são os comentários de realities shows e, obviamente, o BBB. Descobri o canal no ano passado, ainda que a 17ª fosse uma edição que mal acompanhei.

Eu não estou bem lembrado do dia, mas Tati comentou sobre a forma como ela passou a observar o jogo. Ela observa e lida com comentários em redes sociais de fandoms de participantes fazendo a defesa inflamada dos seus preferidos e pichando os adversários. Tati afrirma que prefere uma relação mais distanciada. E então ela diz algo que ficou martelando na minha cabeça "a gente aprende a não esperar das das pessoas e isso não só no BBB, mas na vida". Isso traria uma visão mais tranquila e menos inflamada, diferente daquela dos fandoms.

Achei essa observação genial. Isso mexeu comigo porque, desde o começo do ano, tenho pensado sobre essa questão de não gastar energias de forma desnecessária, inclusive nas minhas relações. E para isso lembrei dos motivos que levam a esse gasto de energia.

De um lado tem algo na gente em esperar que as outras pessoas sejam iguais a gente. Ou melhor dizendo, que sejam iguais ao que desejamos. Porque é fato que muitas das nossas expectativas estão mais ligadas a modelos que nós criamos em nossas cabeças e consideramos perfeitos que, necessariamente a uma visão "real" de quem realmente somos, pois isso incluiria as nossas falhas, geralmente varridas para debaixo do tapete.

Um exemplo bem clichezão barato do que mencionei antes é aquele da pessoa que fala que sempre foi boa, linda e maravilhosa e não entende porque o universo se volta contra ela. Porque as pessoas sempre lhe fazem mal e tudo o mais. Estou, obviamente, descartando as relações onde há de fato um abuso de poder. Não é o tema aqui.

Por outro lado lembrei do quanto nós resistimos ás diferenças que as outras pessoas nos trazem. Sejam por quem elas são (ou como a vemos) ou pelas coisas que elas fazem. Por vezes essas diferenças são vistas como uma ameaça ao que nós acreditamos. Um furo naquele modelo ideal que criamos, seja esse o modelo que inventamos para nós mesmos ou aquele que criamos em relação ao outro. E daí a gente cria um gasto de energia absurdo para não lidar com essa frustração que esses furos trazem. E diante dessa tarefa inglória, dada a sua impossibilidade, ou ignoramos a situação, ou reagimos de forma agressiva. Não muito diferente dos fandoms, torcidas de futebol ou mesmo na política.

Quando era criança, vi uma vez em uma matéria na TV em que mostrava um avião planador. Ele era  levantado por um Fusca. O carro corria na pista e o avião levantava voo como uma pipa. E ele ia indo pelo céu sem o uso de motor. Ou seja, ele voava ao sabor do vendo, sem a necessidade de um motor que o deixe em funcionamento. A energia vem do ambiente, sem a necessidade de um gasto interno.

Então usei essa metáfora do avião --pode ser barco a vela tb-- em reflexões pessoais nos úlltmos meses, em especial no trato com as outras pessoas. Percebo que não é interessante fazer um gasto desnecessário de energia em determinadas situações. Voltando à visão da Tati, aproveitar melhor o jogo, sem necessidade de cair em uma certa passionalidade com o que estamos vendo.

Por outro lado o avião não voa sem direção. Ele tem um ponto de partida e um lugar para retornar após um tempo. E o piloto tem que saber muito bem manejá-lo. Assim como o canal da Tati, assim como as nossas relações. Temos nossas intenções e propósitos. Não tem como colocar aqui que somos neutros: nossa visão não afeta aquilo que vemos. Ainda que com intenções menos fechadas em função daquilo que achamos como ideal.

Nesse sentido é importante perceber o quanto somos influenciados pelo o que está ao nosso redor, bem como o quanto influenciamos também o nosso ambiente. Nem sempre numa relação simétrica. Aliás, tanto o lidar com a alteridade, como a natureza, nos lembram das nossas limitações.

O importante aqui no caso e permitir-se surpreender com aquilo que aprendemos com essas experiências com menores expectativas. E também vermos que as expectativas não param de vez, elas estão ali. O reconhecimento disso é muito importante. E, aos trancos e barrancos, tentar lidar com essa estranha ecologia entre os nossos desejos e o mundo que nos rodeia.

Ainda estou aprendendo a levantar o voo desse planador, que está bem longe do céu.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Bocas, olhos e falo

A Boca Cheia de Dentes

Vaidosa. Orgulhosa. Insensível. Assim tu acusas.

Feliz, ela se enche e conclama a festa que uma nova boca está para chegar. Não sabemos ao certo se será boca, cabeça ou coração. O que importa é a festa. E o que não importa é a dor de quem a boca cheia de dentes deixou para trás cheia de dores. Pra ela, isso não conta.

Essa boca é H E T E R O N O R M A T I V A. Assim dizes. Tu que és os

Olhos Semicerrados

Que observam e por não ser boca, não falam. Sempre atentos a tudo. Críticos ao que está a sua volta. Nada fala, só observam. Aliás este é um mote teu. Olhos extremamente sensíveis, mas por vezes de pouca sensibilidade. Na hora de captar as coisas, fazem bem. Na hora de colocar para fora, tomam de empréstimo uma boca tal qual aquela cheia de dentes e sem o menor tato para as consequências.

Aquela boa H E T E R O N O R M A T I V A. E dessa vez, tu não o dizes.

Prefere a acusação que atropela. Fala dos meus nãos: a não prova, o não concurso, o não dinheiro, a não organização financeira. Não, não, não e não. E se caio em prantos, isso pouco importa. São olhos, não se fala de coração

Assim fazes, pois tu e a boca são fálicos. Precisam da festa e da acusação para manterem os seus devidos lugares. Eu também o sou, pois aqui não se fala de bocas, nem de dentes, nem de olhos. Falo sobre homens.