terça-feira, 19 de dezembro de 2017

As experiências como relações amorosas

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo." (Álvaro de Campos, Poema em Linha Reta)

Tinha um tema no meu Bullet Journal esperando para ser desenvolvido. Lá estava escrito assim: "Das coisas que temos: as experiências que damos valor e as experiências dos outros". Por conta da procrastinação, adiei esse tema junto com os demais que estão lá. Provavelmente esse tema deve ter aparecido em alguma conversa longa com o Evandro, já que vira e mexe ele gosta de discutir temas assim comigo em longas conversas.

Fiquei um pouco relutante, talvez, por parecer um tema de auto ajuda com respostas óbvias do tipo: ah se você está valorizando as experiências do outros é porque há um problema de auto-estima sua. Então esqueça os outros e valorize-se. Fim. Penso que isso seria muito simplista para um tema em que consigo ver outros pontos além desses.

O ponto principal, após bastante tempo pensando sobre esse é: por que as outras experiências, diferentes das nossas, parecem melhores? Daí pensei em dois pontos: tomamos como nossas aquelas experiências e elas não sofrem o desgaste que sofreriam caso fossem realmente nossas.

As experiências que lidamos, sejam as nossas ou a das outras pessoas, quando são consideradas boas, elas passam por um investimento amoroso. A partir daí penso na questão da deterioração. Uma pista pode ser obtida pensando nas relações amorosas em si: em um primeiro momento a pessoa que amamos parece perfeita, até que com o tempo essa perfeição vai desaparecendo e os defeitos vão aparecendo, a pessoa não corresponde àquilo que idealizamos e os defeitos ficam mais aparentes. Talvez, as experiências dos outros que achamos maravilhosas, pode passar por um lado um processo parecido: as tomamos como nossa e imaginamos "nossa, como tal coisa é boa, como fulano vive bem". A diferença é que no fim das contas ela é uma experiência da outra pessoa, não minha. E então não sendo minha não tenho que conviver com o desgaste que ela possa sofrer com o tempo

Ultimamente comenta-se muito sobre as experiências compartilhadas em redes sociais, especialmente as fotos, que retratam sempre momentos felizes. Muitas vezes isso é criticado como algo típico do momento em que vivemos e que seria uma superficialidade e uma maneira de esconder coisas ruins em nossas vidas. E nesse "simulacro" as experiências dos outros que nos aparecem sempre surgem como maravilhosas e as nossas são vistas como ruins, pois não correspondem ao que vemos nas redes sociais. Nesse sentido prefiro fazer uma outra reflexão.

Não vejo o compartilhamento de experiências boas como uma novidade. A diferença é que fazíamos ( e ainda fazemos) através das conversas. Seja num papo de botequim, ou ao encontrarmos uma pessoa amiga nossa após algum tempo ou até mesmo nas famigeradas reuniões de família.Fernando Pessoa, via Álvaro de Campos, já nos deixa bem claro a nossa necessidade de parecer bem sucedido em seu "Poema em Linha Reta".  E , de alguma forma, assumimos as nossas experiências como um valor, a exemplo de nossos bens materiais e sentimos a necessidade de trocá-las com as outras pessoas. Como um exercício de laço afetivo e também de ter no outro o reconhecimento daquilo que fizemos. Quantas vezes numa viagem pensamos "imagine se pessoa tal estivesse aqui comigo agora?"

Eu me lembro das vezes em que, por algum motivo, fiquei sem computador. Ficava imaginando: quando eu voltar a usar um computador vou escrever vários textos. E é uma época em que meus cadernos enchem de rascunhos de contos e poemas. A imaginação tinindo pela falta. Aí quando voltava a ter o computador, o projeto dos textos ficam esquecidos. Enquanto eu não possuía o computador de volta, ele era um objeto ideal para colocar em prática coisas que eu acho maravilhosas. Quando ele voltava, eu me dava conta de que para escrever eu precisaria estabelecer uma rotina e lidar com esforço que é escrever, que é mais que inspiração. O que estava distante parecia ideal e quando a rotina vem, a falta de vontade aparece. Era apenas uma questão de preencher um certo vazio emocional, que por um lado pode ser produtivo, desde que as coisas fossem adiante.

Aqui seria a parte para apontar a solução mágica e simples: gente, vamos entender que as coisas se desgastam e que a vida é assim e que só dessa forma podemos parar com essas idealizações. Só que isso é um processo longo e, caso seja do desejo da pessoa em mudar, não é tão simples. Mas a partir do momento em que se arruma disposição para o entendimento desses processos já há um caminho que permite até perceber de que forma essas idealizações se relacionam com a nossa auto-estima e pode fazer a gente seguir em frente em meio a tantas experiências. Tanto as nossos como o dos outros.


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Se joga

Uma das minhas grandes dificuldades: iniciar as coisas.

Vou usar a metalinguagem para ilustrar isso. Na página 58 do meu Bullet Journal, feito em julho deste ano, há uma lista de temas que servirão de textp para esse blog. Porém, o combo preguiça e procastinação fizeram com que esse texto, sobre a necessidade de se arriscar e se jogar, só fosse feito agora.

Chega o fim de ano e vem à cabeça aquela velha reflexão: lições aprendidas. E ei-la: se jogar na água fria,

No inverno desse ano -- ok, inverno no litoral do RJ não existe-- por conta da resistência do chuveiro quebrada e a demora em trocá-la por conta da procastinação  me fez encarar a água fria por alguns dias. Lembro-me de ter pego o "The Fat of the Land" do Prodigy pra tocar e a partir do ritmo da música tomar o banho sob a água gelada. A estratégia deu certo e no fim, serviu até para a economia de energia. O corpo se sacudindo produz calor e é uma beleza nesses momentos.

Esses dias meu namorado conversava comigo sobre o que eu quero fazer profissionalmente: terminar minha formação em psicologia, seguir pra uma pós ou fazer outro curso. E daí fiquei em n reflexões sobre como pode ser o futuro, esses eternos adiamentos e a dificuldade em iniciar as coisas. Me veio a mente a ideia principal deste livro (que baixei, mas não o li por inteiro) que fala sobre auto ilusão. Como a clássica "segunda começo a dieta".

A despeito de qualquer amontoado de pesquisas que eu desconheço a sua validade científica, uma coisa legal que fazer o Bullet Journal me mostrou ao ensinar a fazer a lista de coisas foi: passado o dia, aquela tarefa que não foi feita merece ser adiada pra outro dia ou ser descartada de vez? Se não for realmente necessária ou válida, basta riscar. Isso evita a tensão de ter que ver aquela coisa por terminar o tempo todo enchendo o saco ali. Mas essa ideia só tive recentemente ao rever o vídeo do pessoal que criou o conceito dessa agenda.

E voltando a conversa com o namorado. Ele me disse "se quiser fazer algo, inicie". Parece uma mensagem positiva por um lado. Por outro lado, nós dois ponderamos que, embora seja uma mensagem encorajadora por um lado, por outro ela pode ser muito inconveniente. Especialmente quando está lidando com alguém que não está bem com sua saúde mental. Por isso é mega insensível, por exemplo, chegar pra uma pessoa com depressão e dizer: olha pra sair dessa basta você dar o pontapé inicial. Tá, mas com que recursos? Por isso existe a necessidade de ajuda profissional. E eis o grande dilema, respeitar a saúde mental, mas ao mesmo tempo não deixar que a paralisia em não iniciar as coisas piore ainda mais a situação.

Sendo assim há dois processos importantes. Um que permita a se arriscar e poder fazer coisas novas ou retomar aquilo que ficou pra trás e que por uma série de inseguranças, ficaram guardadas. Outra é ver se, com o tempo e a devida reflexão, aquilo é realmente importante e não ver problema nenhum em descartar aquilo, que no fim das contas só servirá para alimentar uma neurose do tipo: preciso fazer tal coisa. A auto-ilusão do livro que citei.

Tão importante quanto se sentir vivo e capaz de se jogar na água fria, ao som da música que se gosta e sair com a pele maravilhosa é pensar no que realmente importante. Esse processo implica num exercício de auto conhecimento que na maioria das vezes surpreende. Especialmente porque aquela procastinação, aquele adiamento pode estar mascarando algum desejo que ainda não foi colocado pra fora e aquele "preciso fazer isso" e que nunca é feito funciona como uma represa pra esses desejos.

 Volta e meia cito nos meus textos e penso no processo de "cortar as inutilidades" dos poetas neoclássicos, a necessidade de um bom acabamento. Um caminho bom no processo de auto conhecimento é reconhecer onde é preciso fazer esses acabamentos, riscando aquilo que for inútil. E poder dar início, se jogar, nas coisas que realmente importam.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

As Natálias que conheci

Retomando o Liquididificador, resolvi pegar uma lista de temas que eu tinha deixado no meu bullet journal em julho (olá procastinação, minha velha amiga!) e resolvi postar mais. O primeiro tema dessa lista era, justamente, o título desta postagem. Além disso ele se relaciona com o mais recente.

No remake de 2006 da novela, “O Profeta”, Natália (Vitória Pina) é filha de Dedé (Zezeh Barbosa). É uma menina negra de pele clara que tem vergonha da mãe, que tem a pele escura. Em uma cena que viralizou no Facebook e que, infelizmente, não consegui encontrar, ela despeja a raiva que sente da mãe por conta do racismo internalizado.

A cena é um exemplo da manifestação do chamado “colorismo”. No Brasil. O racismo é mais forte contra pessoas de pele mais escura. No podcast de que participei, num primeiro momento apareceu a impressão de que o colorismo era um recurso que nós negros usamos uns contra os outros, sem o envolvimento de pessoas brancas. Mas a situação não é essa. A branquitude mantém a sua hegemonia com essa cisão e, por mais que o tom da pele aponte diferenças na forma de tratamento, o negro de pele clara não desfruta dos mesmos privilégios das pessoas brancas.

Algumas pessoas da militância negra afirmam que, diante de um preto de pele clara praticando colorismo, não cabe a gente apontar a sua negritude, que isso deveria ser um processo de auto descoberta. Eu, por exemplo, lido com alguns adolescentes com essas características, mas reparo que entre aqueles que se politizam mais, depois de um tempo assumem a sua negritude, sem que haja, de fato, a necessidade de apontar isso.

Por outro lado eu me lembrei da minha infância. Minha mãe, do jeito dela, sempre apontou essa questão. Creio que por conta das experiências dela, por ter a pele escura, sempre procurou passar pra mim e pra minha irmã as formas como isso acontece. Dessa forma, ela já nos ensinava como lidar com crianças negras de pele mais clara que procurariam diminuir a gente, especialmente a mim, que tenho a pele mais escura que a da minha irmã. Ensinou a gente a apontar a negritude delas. E sempre funcionou. Toda vez que eu tive que lidar com uma “Natália” na minha infância eu mandava “não fala nada, que você também é preta ou preto”. Alguns podem ver isso como crueldade entre crianças, mas era a forma de lidarmos com o racismo internalizado entre a gente. E em muitas vezes, já na transição pra adolescência, tive algumas respostas positivas por ter ajudado alguns outros negros que não se percebiam assim.

Anos mais tarde, fui me encontrar com um rapaz. Ele era um pouco mais claro do que eu. Rolou o que tinha que rolar e, lá pelas tantas ele dizia orgulhoso que “dentre os meus irmãos eu sou o único branco”. Eu, sem noção e de supetão disse “mas você não é branco”. O rapaz ficou quieto. Desde aquele dia não rolou mais nada, apesar de ter sido uma noite muito boa. Algum tempo depois eu o encontrei na fila do cinema e o ele tentou fingir que não me via.

Já li alguns textos apontando que o colorismo foi uma forma de dividir os negros e impedir o seu fortalecimento, já nos idos coloniais. Na mídia, reparo que diversos papéis que poderiam ser feitos por pessoas negras de pele mais clara foi feito por pessoas brancas. De cara, me lembro da minissérie Agosto (1993) em que Salete, uma das protagonistas da série, é vivida por Letícia Sabatella, ao passo que sua mãe, Sebastiana é vivida por Léa Garcia. O mesmo vi duas vezes com Betty Faria, na adaptação de “O Cortiço”, em que ela vive Rita Baiana (personagem negra) e em Tieta, atualmente em reprise no Viva, que no livro não é uma mulher branca. Aliás, a Madame Antoinette- como ela é conhecida em São Paulo- para poder justificar que é francesa, diz que é mestiça, pois sua mãe é das Antilhas Francesas, local que recebeu um grande número de africanos escravizados, a exemplo do Brasil. Lembro-me de Maria Ceiça, atriz negra, que no documentário “A Negação do Brasil”, fala do seu maravilhamento ao perceber que muitas das personagens de Jorge Amado poderiam ser feitas por ela.

Aliás reparo que atualmente, alguns desses papéis, tem sido interpretados por atrizes como Juliana Paes e Nanda Costa. Porém, aqui no Brasil, muitas vezes elas são lidas como “morenas”. Aliás muitos fazem a mesma leitura para Camila Pitanga, mas essa sempre faz questão de afirmar a sua negritude. Lembro-me também de Sônia Braga, que entrevista já disse que apontava sua ascendência portuguesa diante dos americanos que não a leem como mulher branca ou “morena”. Aí é uma boa reflexão de como as relações raciais não são naturais, nem únicas, mas tem toda relação com o contexto social em que elas se dão.


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Consciência Negra: eu no podcast

Na última segunda feira tive a oportunidade de participar do podcast "The Library is Open", a convite do Thello, Rodrigo e Caio. Na maioria das vezes é um podcast dedicado a RuPaul Drag Race, com temas que interagem com outras questões LGBT e, em dados momentos -- quando a atração não é exibida -- há discussão específica de vários temas: representatividade, gordofobia, bifobia, homofobia, transsexualidades entre outros temas que podem ser conferidos na página deles. No último dia 20, foi a interseção entre negritude e LGBTQ, onde eu tive a alegria de participar com, além dos citados, com Jean e Guilherme. Quem quiser conferir, pode clicar, aqui.

A oportunidade pra mim foi boa, apesar da minha ansiedade e das constantes quedas do meu roteador. Puder colocar as minhas questões, vivências e pensamentos. Além disso, houve dois pontos que me ficaram ressaltados para mim.

O primeiro ponto é que com a participação do Guilherme, que é bissexual e de Jean, que é travesti, eu pude perceber e ouvir- escuta, este exercício sempre tão necessário- experiências que são diferentes das minhas. Ao mesmo tempo perceber o quanto a questão racial por vezes une nossas vivências.

O segundo ponto é que entre os realizadores estão pessoas com quem converso há anos e compartilhamos pontos em comum, até porque, entre outras coisas, somos bichas gordas. Mas ali estávamos conversando sobre um dos vários pontos em que nos diferimos e o peso que isso tem.

A partir dessas reflexões penso em outras questões. Uma, que foi colocado aqui pelo Spartakus Santiago. Para ele , o dia 20 e os demais dias não devem ser apenas para nós, pretos, falarmos de racismo. Temos muito mais a contribuir e dizer além disso. Nesse sentido acho que é importante a nossa criação e conquista de espaços para nossas vozes serem ouvidas, que a nossa produção seja vista.

Nesse sentido começo a entender melhor um dos motivos que me fizeram desfazer um a amizade essa semana naquela famosa rede social. Eis a situação: a pessoa reclamou sobre um artigo na seção de gastronomia de um jornal sobre a invisibilidade de restaurantes de imigrantes pretos africanos. O motivo da reclamação foi que, para essa pessoa, o racismo se opera "de verdade" em questões como o genocídio do povo preto e a desigualdade. Nesse sentido, reconheço que são temas urgentes e que jamais podem ser negligenciados, fato que prontamente concordei com a pessoa. Por outro lado, não gosto de uma ideia supostamente militante em que a discussão sobre negritude deve se dar apenas nos aspectos negativos, deixando de lado as potencialidades.

Pensando nas palavras do Jailson de Souza, doutor em educação e com origem no complexo da Maré, que dizem que está na hora de parar de apontar a favela só pelas carências (sem querer mascarar a inexistência delas) , deixando de lado o que é produzido lá. Posso ampliar essa noção para negritude. Somos bem mais que aquilo que as estatísticas de violência e desigualdade dizem, ainda que elas sejam extremamente importantes e apontem sim, questões urgentíssimas para a nossa sobrevivência. O incômodo mesmo é esse maniqueísmo e enquadramento.

Então, creio que há vários caminhos a serem tomados. Um deles é o fortalecimento daquilo que nós pretos produzimos. E, para brancos que querem contribuir com essa causa, usando o espaço de privilégio que essa sociedade há séculos racializadas (sim, não é invenção de americano nem do "politicamente correto") lhes confere, é dar e ouvir as vozes de pessoas pretas, refletir sobre a branquitude ( por favor, leiam esse texto da Gabriela  Moura) e abrir seus espaços de fala não só para a discussão do racismo, mas também para outros temas para não sermos apenas o token lembrado no dia 20 de novembro.

Sobre a nossa participação em contextos hegemonicamente brancos, a  Tia Má coloca mais ou menos isso na sua fala a respeito de sua participação no programa da Fátima Bernardes em plena Rede Globo, ainda que isso dê espaço para uma discussão para além desse texto.

Enfim, que a nossa consciência nos aponte não só a realidade a nossa volta e nos dê forças para as tantas lutas, mas que permita também o nosso brilho. Mais uma vez fica aqui meu muito obrigado pelo convite por aquela participação.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Vez de Morrer

Já fazia mais de um ano que eu tinha comprado esse livro, mas ainda estava sofrendo com as minhas procastinações básicas. E levei quase um mês para finalmente escrever esse texto, que é uma análise pessoal e, sendo assim, tá longe de ser aquelas resenhas críticas formais com as impressões que tive do texto de Simone Campos.

Basicamente temos Izabel como protagonista, que após a morte do avô sai do Canadá e volta para o Rio de Janeiro, indo se estabelecer na localidade de Araras no município de Petrópolis, região serrana fluminense, na casa onde morava o seu avô. E é basicamente nesse cenário que se dará a maior parte da ação, sejam os envolvimentos sexuais/afetivos de Izabel, sua busca por trabalho e os confrontos.

Primeiramente me chama a atenção em como Simone coloca Araras. Fazendo uma ótima ironia com a classe média carioca, ela dá um histórico das transformações do lugar nos últimos tempos. Mas é bom esquecer o clichê do "local pequeno isolado e com pessoas pequenas interioranas", uma vez que múltiplas realidades se inserem naquele lugar. É o ponto que me chama para as diversas alteridades que há ali. E se estamos em uma época em que as formas de comunicação andam mais velozes bem como o encontro dessas alteridades, isso não é deixado de lado e para isso, não foi necessário colocar personagens "online" 24 horas por dia. Tentarei refletir melhor sobre essas alteridades.

Em uma época em que vejo discussões sobre "recorte de classe x identidades", uma dicotomia que considero artificial e que não dá conta da multiplicidade e da forma como uma questão atravessa a outra eu vejo essas diversidades. Por um lado há Izabel, mulher, independente, que vivencia sua bissexualidade sem grandes conflitos internos por conta disso, branca, de classe média. O fato dela ser mulher bissexual e as dificuldades que surgem por conta disso não são desprezadas, muito pelo contrário. Mas o seu encontro com Eduardo, aquele com "cara de índio", de outra classe social é atravessado por essa diferença. Percebo isso no momento em que ela chega na loja dele e espera ser servida- em um país como o nosso as classes média e alta esperam sempre ser servidas- bem como a forma que ela pensa sobre os nomes das pessoas naquele contexto:

"naquelas partes, havia muitos nomes como Geísa e Joelmo e Klay, mas o homem se chamava Eduardo. Izabel sentiu uma compulsão de ir atrás da mãe do rapaz e congratular o bom gosto"

O que me faz pensar na teoria das representações sociais, em que uma das ideias é "tornar o estranho familiar". Se Eduardo é o "outro", seu nome e as suas características intelectuais e o fato dele não comungar da mesma religião de seus familiares, faz com aquele rapaz, a princípio de outra classe, se aproxime das referências de Izabel. Há algo de narcísico na nossa atração.

Pessoalmente, ainda pensando nessa questão de classe, há algo que me chamou a atenção Tem um momento em que a procura de Izabel por um apartamento na zona sul carioca e ela procura estabelecer boas relações com o porteiro.
"Saiba conquistar um porteiro e um corretor ficará sem comissão. - Boa tarde!- Boa tarde, - Meu nome é Izabel"
Ali naquele momento tem-se o olhar da Izabel e eu, na minha leitura automaticamente fiz o olhar reverso, uma vez que meu pai foi porteiro por 50 anos, também na zona sul carioca e lembrei das inúmeras vezes em que aparecia gente pra vender os apartamentos e pedia a ele pra indicar um comprador na base do "depois te dou uma comissão" e depois sumia. Situação que só mudou após o casamento com minha mãe, que não deixava meu pai vacilar desse jeito.

Aliás, falando de religião, ao ver as personagens evangélicas, é bom esquecer o esteriótipo - especialmente no caso das mulheres- da beata de saião gritando aleluia o tempo todo. Com conhecimento de causa, Simone mostra as personagens evangélicas sem esses clichês, sem deixar de lado as noções morais que norteiam esse grupo que, ao mesmo tempo se insere no contexto capitalista da teologia da prosperidade. Isso pra mim é bem evidente nos planos da irmã de Eduardo.

Na questão da alteridade, me chama a atenção uma passagem em que na busca de uma terapia quando era mais jovem, Izabel se vê diante da negligência da terapeuta.  Justamente o material principal de qualquer abordagem (a escuta) é deixado de lado e essa ausência reflete, até certo ponto, o modo como a personagem lida com suas emoções.

Em toda a leitura não posso deixar de lado a forma bem feita como são construídas as personagens masculinas de diversas classes. Ao começar por Eduardo, personagem que tomei antipatia desde o começo por achá-lo um completo babaca que faz as coisas só pra manter o seu lugar de "macho" diante das cobranças ao redor dele. Se Izabel é cobradas em ter uma carreira, um emprego estável, seja por sua mãe ou a vizinha Aída, ela ocorre com Eduardo no sentido dele ser um homem solteiro e adulto. A forma como ele se relaciona com Sirlene e com os amigos é bem típica com o marcador atual da irresponsabilidade: homem não tem responsabilidade é assim mesmo. Sem falar nesse marcador da masculinidade da necessidade a aprovação de outros homens, como na transa com Haline:

"Uma loirinha chamada Haline colocou à prova os rumores (de homossexualidade) sentando em seu pau no banco de trás. Ele estava tão bêbado que não pôs camisinha (...) Gozou, abriu os olhos e viu Otoniel e Adão do lado de fora aplaudindo".
Essa passagem me lembra muito algo da indústria pornográfica em que, se o ator não goza, ele não recebe o cachê e precisa chamar outro pra completar a cena.

Outro bom exemplo desse machismo está presente com o ator namorado de sua amiga, cuja maior preocupação é não parecer corno. Mesmo vivendo em um meio diferente do de Eduardo- daí a importância do recorte de gênero além do de classe- ele tem essa preocupação do olhar de outras pessoas que podem tirá-lo desse lugar do masculino. Outro personagem detestável, porém verossímil.

Em meio a tudo isso gosto de perceber a presença marcante de uma cor na obra: o branco.

"A qualquer momento surgiria a construção branca que substituíra a antiga rodoviária"
"...logo Izabel avistou a fila de táxis também brancos que cobravam por destino e não distância"
"Só quando entrou na rodoviária se deu conta da espessura da neblina. Lufadas brancas invadiam o interior do terminal. O frio também. O frio era branco"
"Dois faróis branquíssimos perfuraram a distância e encontraram as retinas de Izabel"
"Agora eles eram brancos e tinham na lateral o brasão cinza-claro da cidade"

Se o branco em princípio se relaciona com a luz e clareza das coisas, aqui ele ganha um ar paradoxal de obscuridade. Os táxis e os ônibus não são como na infância. No Rio, as cores que ajudavam a identificar os carros, agora não existem, está tudo padronizado. Como a própria vida em que se exige uma padronização para o comportamento do homem, da mulher (negando outras identidades para além dessas) a forma dos nomes devem ser, as orientações  sexuais, o tipo de emprego, o trabalho que deve ser feito as várias cobranças e expectativas criadas.

Antes de escrever esse texto reli esse trecho dos taxis "cobram por destino e não por distância". Penso muito nesse mundo em que tudo parece conectado e que em tese facilitaria as nossas relações. Mas o que fazemos de nossas vidas é sempre cobrado. O nosso destino. E no final "A Vez de Morrer" fala dessa tentativa de Izabel e de todos nós de fazermos o nosso destino, sem essas cobranças.


 
 
 
 








quinta-feira, 17 de agosto de 2017

As palavras de Diva

Eu tinha 11 anos. Um colega de escola, que também era meu vizinho, tinha feito um comentário preconceituoso a meu respeito com alguns amigos da turma dele em voz baixa, mas eu ouvi. Fiquei quieto e comentei mais tarde com minha mãe. Disse que o tal colega tinha sido repreendido por alguns outros colegas e ela me disse "quem tem que se posicionar é você, não é para os outros te defenderem ou terem pena de ti". Ela sempre teve essa postura em relação a como se posicionar em situações como essa, especialmente quando envolve racismo. Daí, 28 anos depois daquele acontecimento, eis que Diva Guimarães é aplaudida na Feira Literária de Parati, a FLIP. E o que essas duas situações me trazem?

Prestei a atenção em primeiro lugar na fala de Diva. Eu me emocionei com sua trajetória, entendendo que aquela narrativa não me era incomum, mas tinha semelhanças com muitas mulheres da minha família e tantas outras mulheres pretas com quem convivi e que foram fundamentais no meu entendimento enquanto homem preto. Mulheres como a minha mãe.

Eu fiquei extremamente incomodado com as sucessivas interrupções de aplausos daquela plateia - fato observado tanto pelo Lázaro Ramos como por Diva Guimarães- majoritariamente branca. E esse incômodo tem vários motivos. Tem um quê de expiação católica naqueles aplausos, como se aplaudir aliviasse um pouco a "culpa" pelo fato da branquitude possuir privilégios e essa mesma estrutura calcada no privilégio branco que ao longo da vida tentou derrubar Diva. Mas não é só isso.

A plateia branca, ao invés de ficar quieta, e prestar a atenção em suas palavras a interrompia com aplausos. Como se dissesse "olha nós não somos assim, somos diferentes, uhul, olha como sou legal". Ou como se dona Diva fosse a "exótica" o que é diferente e estivesse como uma atração a ser aplaudida, mais pela sua performance, que por suas palavras, que analisando bem, foram duras.

Uns podem soltar o papo de "ah, Odilon, você está sendo radical. Pessoas brancas não podem estar na luta antirracista? Não é um sinal de reconhecimento os aplausos a ela?". Eu digo que a melhor ajuda na luta passa pela conscientização de si e espalhar isso entre seus pares. Tal como muita amiga feminista diz "Homem, quer ajudar na causa. Além de rever seu comportamento, dá um toque naquele seu amigão que assedia, faz piada escrota, não paga pensão, etc e tal". Isso também se aplica nesse caso. E isso não é excluir, muito pelo contrário, é apontar de que forma as pessoas brancas tem o seu papel nesssa relação de poder que é assimétrica.

Aliás nesse sentido lembro de um incômodo que uma pessoa branca me relatou dizendo que aquele era um momento solene. De escutar aquelas palavras em silêncio. Achei muito pertinente essa reflexão dela.

E por fim, me vem sempre as palavras da minha mãe que iniciaram esse texto e serve de inspiração pra mim e pode servir para outras pessoas pretas se posicionarem, tal como Diva fez de forma brilhante lá na FLIP`. Quem deve falar somos nós, e não esperarmos que os brancos venham nos defender. Nem aplaudir por aplaudir.

domingo, 2 de julho de 2017

Dear White People

Esse é um daqueles textos que levo tempo pra escrever, embora estivesse com a ideia dele já há algum tempo. Pensei em fazer, a princípio, uma resenha crítica sobre a série, mas acredito que essas observações do Murilo do "Muro Pequeno" já abrange muito que eu poderia pensar. Recomendo também, nesse sentido, o canal da Natália e Maristela, que tem muitos vídeos bons discutindo essas e outras questões.

O que me chamou a atenção foi a diversidade das personagens e as formas como cada um tem que lidar com o racismo. Nesse sentido, chamou a atenção de muitos comentaristas e de mim também a personagem Coco. A primeira vista ela parece ser uma negra querendo assimilar o que a branquitude tem, mas as questões são bem mais profundas. E fazendo uma relação com o que aconteceu com minha família, ela me deu bons insights.

A minha avó era uma mulher negra que se preocupava muito com a forma como a gente deveria se portar. Nada de falar alto, fazer bagunça, ter maus modos a mesa, pois ela achava que por sermos pretos, esses "maus modos" poderiam ser mau vistos. Por outro lado, ela tinha uma forma de se impor que era bem interessante.

Uma vez, meu primo foi na igreja em que ela congregava e não quis se sentar em um dos poucos espaços vazios que havia na igreja. Ela perguntou-lhe a razão e ele disse que o senhor que estava sentado perto do lugar vago era racista e não gostava de preto sentado do lado dele. Então ela disse "pois é ali é que você vai se sentar. E nos próximos domingos é do lado dele que você vai se sentar, só pelo desaforo". E assim ele foi fazendo e, acho que por conformismo ou pra não passar de recibo de racista no meio da congregação de forma tão explícita o homem não disse nada e ao que parece, depois daqueles dias, parou com essa palhaçada.

Muito amigos e conhecidos pretos me falam do quanto faltou (e falta) a eles referências familiares no enfrentamento ao racismo, uma vez que muitas vezes é negada a existência dele ou então rola o famoso "você tem que saber o seu lugar". No meu caso, minha família está anos luz de ser aquela super "desconstruída militante viva Dandara!" pois, estando numa sociedade em que o racismo é institucional, isso também vai se passar pelas relações pessoais. Mas assim como Coco, com o pouco que conseguimos meus avós foram, do jeito deles, se instrumentalizando para lidar com o racismo e isso foi passado pra minha mãe, que conseguiu ser uma pessoa mais atenta e com um entendimento melhor sobre questões raciais, que, por sua vez passou pra mim e pra minha irmã.

E mesmo com tudo isso, ainda há muito ainda em mim para ser questionado como forma de não só assumir e entender o meu papel como pessoa preta, mas também de que forma lutar e saber ocupar os espaços. De que maneira, na vida, devo sentar naquele lugar vazio, mas que o racismo- tanto o internalizado como o externo- tenta me impedir de sentar. Nesse sentido, penso que há muitas lições vindas tanto de Dona Conceição, bem como da análise do comportamento de Coco.

Ps: Super recomendo também esse podcast da moçada de "O Lado Negro da Força".


quinta-feira, 22 de junho de 2017

Presente

"Mas de repente a madrugada mudou 
e certamente 
aquele trem já passou 
e se passou 
passou daqui pra melhor, 
foi!" 
 (Go Back, Torquato Neto)

Aí mais uma vez me deparo com aquele tipo de texto que glorifica o passado e acha que o tempo atual é maravilhoso. E eu, no meu lado Simão Bacamarte, acabo verificando uma forma de narcisismo nisso. Mas antes de prosseguir, cabem algumas lembranças.

Meu gosto musical inclui muita coisa antiga. E na verdade esse foi um processo que foi formado ao longo da minha vida, mas há episódios significativos de como isso foi se consolidando. Um deles vai me fazer voltar a minha adolescência.

Na época eu tinha 12 anos e em plena Copa da Itália a televisão pifou. Foi um drama e, obviamente (moçada dos anos 80-90 vai entender isso bem) a culpa pelo estrago da TV sobrou pro videogame. Um Atari na verdade, numa época em que os consoles da Sega ( Master System e Mega Drive) e da Gradiente (Phantom System, que rodava jogos da Nitendo) estavam chegando ao Brasil. E enfim, no meio disso tudo, a televisão não foi consertada de cara e passamos uns 2 meses ouvindo rádio, incluindo a Copa e a eliminação do Brasil com aquele gol do Caniggia.

Durante esse tempo a rádio que era mais sintonizada era a Antena 1, que era a rádio de flash-backs por excelência. Ali, no comecinho dos anos 90 passei a ouvir um repertório dos anos 60 e 70 basicamente e que remetia a infância e adolescência da minha mãe. Não menciono meu pai porque em 68 ele não seria uma pessoa confiável, já que tinha acabado de fazer 31 anos.

Eu,  na começo da adolescência gostava de zoar aquelas músicas. Achava aquilo tudo muito velho e por implicância ficava zoando o tempo delas. Mas obviamente eu gostava de muita coisa. Lembro-me também que nessa época um primo nosso passou uma época lá em casa e era ele que me fazia escutar as rádios com as músicas que na época eram atuais. E verifiquei que alguns hits eram regravações, como Knockin' on Heaven's Door do Gun's, que era uma regravação do Bob Dylan, que, aliás, faria seu primeiro show no Brasil naquele ano.

Outra questão musical interessante foi quando a professora de música comentava sobre a moda da lambada. Quando se é muito jovem, parece que as coisas vão durar pra sempre. Mas ela avisou pra gente que em música, assim como em outras coisas, existem ondas. Modas que vão, desaparecem e depois retornam. De fato, a lambada não durou muito tempo, mas atualmente temos aí o reggaeton latino em alta, bem como alguns ritimos paraenses (como a lambada) e que apresentam familiaridades sonoras, uma vez que eles se encontram em bases semelhantes, ainda que sejam estilos diferentes.

Depois, já adulto sempre fiquei com aquela cisma: será que minha playlist é muito velha, apegada demais ao passado? Depois com um tempo reparei que não. Que na verdade, embora não suporte a maior parte do que se executa no pop atual e costumo gongar dizendo que tal coisa que Lady Gaga fez tá copiando Madonna no álbum tal, ou que a Nick Minaj tá pegando carona em algo que a Trinere fez muito melhor nos anos 80 reparo que gosto de ouvir coisas atuais, ainda que não necessariamente estejam no mainstream. Aliás não ouvir as músicas mais executadas nas rádios, como eu fazia 27 anos atrás com meu primo, é um sinal da atualidade, onde as coisas andam mais segmentadas por conta do impacto da internet na indústria fonográfica.

E qual a razão de toda essa reflexão musical e o que isso me fez pensar sobre outros aspectos da vida e qual a relação disso com o nosso próprio ego? É porque na medida em que vou envelhecendo vou me incomodando com esse discurso de que "antigamente era melhor", ainda que eu em vários aspectos reproduza isso. E tenho reparado que esse discurso - e que serviu de referência para essa reflexão- vem quando as pessoas sentem que em tempos atuais não podem falar qualquer merda sem ser criticada por algumas pessoas.

O clássico "geração mimimi" que vemos mencionados em redes sociais (ironicamente por uma galera com menos de 20 anos muitas vezes) é um bom exemplo da ideia de que se o mundo atual não aplaude qualquer merda que eu falo, então culpemos o presente e a atualidade e vamos nos fechar na nossa lembrança narcísica do "meu tempo", "minha época" ou "minha juventude" para, de alguma forma, termos o nosso pensamento valorizado. Ou uma ideia de lembrança para aqueles que não viveram aqueles tempos, mas ainda o idealizam, como a galerinha Bolsominion- cujos pais sequer eram adultos no começo dos anos 80- que acha que o tempo da ditadura era uma maravilha.

Aí fiquei o tempo todo com esses versos do Torquato Neto, musicado pelo Sérgio Brito dos Titãs esses dias na cabeça. Pensando o quanto se prender demais ao passado pode servir como uma tranca narcísica que impede de lidar com a atualidade das coisas. Obviamente, não vale colocar o passado para debaixo do tapete, pois como disse a professora, existem as ondas que vem e voltam (to reparando que foi uma professora de música que me fez pensar numa ideia anti-positivista de história em que tudo obrigatoriamente é linear e tende a progredir). É no tempo presente que se pode fazer uma boa conciliação entre o que se aprendeu- como aqueles dois meses sem televisão- e as coisas novas que podem chegar, como aquelas que meu primo me passou e que hoje faço descobrindo via web novas músicas.

E pra finalizar fico com duas frases de dois grandes músicos. O Paulinho da Viola, que diz, "meu tempo é hoje" e o clássico das rodinhas de violão, Belchior em "Como Nossos Pais" que afirma "mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem".

quinta-feira, 15 de junho de 2017

A defesa do óbvio

Então essa semana teve a repercussão em torno da prisão dos dois homens que tatuaram um menor de idade, acusado de roubo de uma bicicleta, no ABC paulista. Eles divulgaram o vídeo que correu pelo whatsapp. E ao que consta, o dono da bicicleta não prestou queixa e estava preocupado com o rapaz e ficou consternado diante da tortura. E há relatos de que o rapaz sofre de problemas mentais, incluindo dependência química e está em tratamento pelo CAPS.

Então vem aquela avalanche de comentários achando um absurdo os grupos que se organizaram para pagar a cirurgia para o apagamento da tatuagem e contra a prisão dos torturadores. Entre os argumentos mais usuais tem-se a questão da pessoa que se esforça por meses e anos para comprar um bem e tem ele roubado. Há o clássico "os Direitos Humanos só defendem bandidos" além do "só defende vagabundo até a hora de um entrar em uma casa". Ou ainda que o tratamento do "marginal" como pessoa indefesa é coisa de discurso politicamente correta e que alguns disseram que leram a matéria ou viram o vídeo e que pelo que observaram que não há nenhum problema mental verificado.

Tristes esses tempos em que temos que dizer o óbvio: tortura é crime, em qualquer hipótese. E o direito a vida não é superior ao de propriedade.

Quem acha que Direitos Humanos só defende bandido realmente não sabe sequer o que o termo significa e que por definição ele é válido para todas as pessoas. E ele não é uma pessoa ou um grupo de pessoas, mas um conceito jurídico que se insere também nos campos social, político e psicológico.

A existência de um julgamento feito pelos órgãos competentes não é um "discurso politicamente correto", mas prerrogativa de qualquer Estado democrático de direito. Diante de um roubo cabe aos órgãos do Poder Judiciário cumprirem seu papel dentro do que foi estabelecido em lei.

O mais interessante é que quando esses argumentos são mostrados aparecem uma série de malabarismos retóricos. Uns que eu não sei de onde a pessoa tira e fazem inferências baseadas na sua própria observação, já dando diagnóstico psicológico da pessoa e tudo o mais.

Daí me lembro do conto da Cartomante do Machado de Assim, onde a personagem principal sai aliviado da casa da personagem título pois ela disse a ele exatamente palavras de conforto que ele gostaria de ouvir. E nós, no nosso narcisismo e para poder conferir as nossas ideias que não passaram por uma verificação racional e lógica, vamos acrescentando absurdos para poder sustentar, ainda que canhestramente, aquilo que dizemos e nos fechamos naquelas ideias. E o pior que nesse caso não é uma simples questão de opinião, mas sobre defesa de direitos básicos de existência de alguém.

Por essas razão tenho que repetir: tristes os tempos em que temos que defender o óbvio e ter que repetir que tortura é crime. E não há malabarismos para isso.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Decifra-me ou devoro-te

Um namorado, ao discutir sua relação, diz ao outro " cuida de mim!" O outro pergunta: "como?" E a resposta é "cuida de mim, do jeito que você sabe fazer!" Essa frase, carregada de enigma e subentendidos, junto com uma demanda de exigência de cuidado do outro traz a pergunta: a quem cabe o cuidado nas relações?

Em uma relação sadia as pessoas devem ter o poder de cuidar de si mesmas, sem a necessidade de exigência da outra pessoa. Assim, o cuidado do outro aparece de forma mais natural. E como pensar nessas questões, levando em consideração que esse texto se trata de relações não abusivas.

Cada um de nós temos nossas identidades, construídas ao longo de nossa própria história pessoal. Dessa forma vamos formando nossos defeitos, qualidades e uma série de emoções. Algumas delas, nós mesmos temos dificuldade em reconhecê-las. Assim, não há como outra pessoa adivinhar o que se passa com a gente se somos incapazes de expormos as coisas de forma clara. Nesse sentido, ter a possibilidade de uma conversa franca é muito importante, entendo que essa é uma forma de cuidado.

Muitas vezes agimos como o enigma da Esfinge de Tebas: decifra-me ou devoro-te. Nos sentimos pessoas muito especiais, tais como um artista famoso, e achamos que o outro sabe tudo a nosso respeito. Daí, manter o enigma e não deixar as coisas clara é uma maneira de manter esse pedestal que criamos para nós mesmos por nos sentirmos tão especiais e maravilhosos. Alimenta-se um narcisismo exigindo cuidado do outro, sem deixar as coisas explícitas, já que falar o que sentimos e nos incomoda seria uma forma de "rebaixamento" dessa imagem criada.

Dessa forma, comunicar o que sentimos, ou até mesmo a dificuldade que sentimos em reconhecer nossas emoções e colocá-las pra fora, é muito importante. Assim, pode ser criar uma relação baseada no cuidado sem exigências absurdas e enigmáticas que desgastam a relação. Isso possibilita nosso posicionamento como sujeitos naquela relação, ao mesmo tempo em que o que é posto está sujeitado ao que o outro sente e pensa. Abre-se o caminho para a comunicação e negociação em uma relação baseada em cuidado que foi construído e não exigido, como na situação dos namorados que ilustra esse texto.

O que Shigemi Suzuki tem a oferecer?


"Amar é dar o que não se tem a quem não quer. Dar o que se tem é festa, não é o amor" (Lacan)

Eu ainda preciso depois dar uma olhada na frase que abre esse texto, que se não me engano é do seminário VIII de Jaques Lacan. Ela foi escolhida porque estou há algum tempo escrever sobre o que achei interessante na série da Netflix chamada Midnight Diner: Tokyo Stories ( Shin'ya shokudou: Tokyo Stories) , no caso o episódio 6, chamado Tontenki.



A série é baseada no mangá de Yaro Abe lançado em 2006 e que já teve adaptações para série de TV japonesa e também em formato de filme. Daí a Netflix resolveu fazer sua versão, ao que parece, com o mesmo elenco. Há 1 temporada, lançada em outubro de 2016, com 10 episódios cada, bem curtinhos, com duração média de 25 minutos. E cada episódio funciona como uma crônica tendo como nome um prato da culinária japonesa servido no restaurante do Mestre, protagonista da série.

O episódio 3 possui a mesma base, o Mestre ( Kaoru Kobayashi) abre seu restaurante às 7 da noite e ele funciona até a manhã do dia seguinte. Desta vez ele é focado na vida da corretora de imóveis Shigemi Suzuki ( Hamiko Itô). Ela sempre se apaixona por um homem e decide fazer roupas de tricô para dar a eles.Só que suas tentativas sempre fracassam e ela desfaz todo o tricô que havia feito, desiludida em sua paixões platônicas.

Num dado momento ela conhece jovens colegas de trabalho, entre eles Kurihara (Ron Mizuma) e Shirano (Yûma Yamoto). Ela se apaixona por Kurihara e decide fazer uma blusa de tricô pra ele. E diferente das outras vezes, ela consegue entregar o presente a ele e a partir daí ela faz inferências de que seu amor é correspondido, ainda que uma moça no restaurante a tenha alertado por ela não ter sido clara em suas intenções. E ainda há Shirano, que a ama sem revelar o seu desejo.

Daí, diante desses presentes me veio essa frase do Lacan e também, além das nossas transferências, as nossas idealizações. Há uma frase do Kurihara, ao ter que jogar o presente fora que é bem significativa "uma malha feita a mão carrega tanta emoção, que eu não consigo jogar fora".

O quanto nós investimos seja em relações correspondidas ou não tanto quanto o tricô de Shigemi? E quantas vezes por conta dessas idealizações não vemos oportunidades ou amores, olhares para nós que sequer damos conta, por conta de certas expectativas que criamos. O que achei bonito nesse episódio, tratado com muita leveza, delicadeza e sem partir pra grandes discussões filosóficas é exatamente  sobre o quanto de mal entendido há no amor e tanto investimento simplesmente por coisas não ditas. E no fim há uma trama inteira a ser desfeita, para depois ser recomeçada.

O amor está além do tricô, que está mais pra festa, como diz a frase lacaniana. Ele está cheio de mal entendidos, de tentativas de remendos como os que Shirano tenta fazer na blusa descartada. E talvez ele deve ser assim, cheio de marcas e imperfeições, bem diferente daquele ideal bonito e contemplativo tal como Shigemi fazia em relação a Kurihara.

Enfim, queria fazer uma conclusão mais bonitinha, mas o que posso afirmar é que esse episódio, bem como os demais da série, merecem muito ser vistos. Belos, delicados, por vezes com uma dose de melancolia, mas que valem muito a pena.



quarta-feira, 31 de maio de 2017

A ditadura do afeminado

Ultimamente tenho acompanhado textos e discussões, tanto aqui como em outros países, sobre o preconceito que cerca os gays ditos afeminados. Ela se dá de várias formas, mas quando se discute a questão do "não sou/não curto afeminados" aparecem estes discursos: é só uma questão de preferência por um lado e, por outro, a questão do quanto esses gostos estão carregados de preconceito, uma vez que nossos gostos são influenciados pela heteronormatividade. Em uma sociedade machista que rejeita o feminino é fato que não é apenas uma "questão de gosto".

Essa semana, em uma discussão que li, uma pessoa postou um print de uma conversa no whatsapp. Era o print de dois rapazes que, pelo jeito, se conheciam há pouco tempo. O rapaz A dizia ao rapaz B que ele era legal, que tiveram um bom encontro, mas que infelizmente, B era afeminado e isso dificultaria, por exemplo, apresentá-lo aos pais. O rapaz B se ofendeu e, na tentativa de A em se refazer e dizer "podemos ser amigos", B disse-lhe que não poderia ser amigo de uma pessoa homofóbica.

Logo em seguida li um comentário que me chamou a atenção. Dizia que os gostos das pessoas não têm sido respeitados e que quem não gosta de afeminados cai na "malha fina" e recebe o rótulo de pessoa preconceituosa. Não ficou muito claro pra mim, mas também a pessoa dizia sobre aqueles que em um primeiro momento fingia não ser afeminada e que depois se revelava e daí achava ruim pelo fato da pessoa não curtir. Nesse sentido o comentário dizia que é importante ser quem somos e deixar as pessoas gostarem ou não da gente, pois ninguém se relaciona com quem não gosta. E que essa mudança de comportamento é algo incômodo.

Penso que independentemente de se pensar as preferências como construção ou não, os gostos devem sim ser respeitados. É muito ruim alguém querer forçar uma pessoa a qualquer coisa que ela não gosta. E sendo específico no caso, se o cara não curte afeminado, que cada um tome seu rumo. O cara que não curte tem seu gosto respeitado e a pessoa afeminada em questão também não é obrigada a ficar com alguém que tem essa visão heteronormativa.

Um ponto interessante que esse comentário trouxe foi o lado de deixar as pessoas gostarem ou não da gente. Recentemente li um texto (infelizmente não tenho o link dele) em que um gay de origem asiática nos EUA dizia que era o momento das pessoas não brancas pararem de reclamar dos brancos que a rejeitam e se relacionarem com quem gostam delas. Acho isso importante, por questão de amor próprio, ao mesmo tempo em que não gosto da ideia do "deixar de lado" quando o assunto é discriminação e preconceito, pois parece que está varrendo a sujeira pra debaixo do tapete. Penso que é importante sim, o valor a si próprio e não suplicar atenção para quem tem determinado privilégio social, mas também bem como apontar o racismo. Nenhuma mudança é possível se tudo fica dentro da mesma bolha.

Outra questão é de também não nos submetermos a uma "persona" que não somos só pra se ajusta ao queé aceito socialmente. Obviamente, não cabe uma mera crítica, pois muitas vezes fazemos o uso dessa imagem aparentemente irreal como uma forma de defesa. Nesse sentido, na medida em que a pessoa toma consciência de quem ela é e se fortalece, sendo essa uma ação difícil e não apenas algo individual, essa persona se torna desnecessária.

O que não faz sentido é a questão da "malha fina". Ou que os afeminados estão impondo uma "ditadura". Ela seria possível sim, se estivéssemos em uma sociedade em que o gay afeminado fosse o mais desejado e o menos vulnerável a sofrer violências de todo tipo. Acontece que a realidade é muito diferente. Por isso é um equívoco, em uma sociedade em que o afeminado está sujeito a sujeito a uma série de violências, baseadas em uma sociedade que coloca o que é tido como feminino em condição de subalternidade. Esse discurso (estão querendo impor que se gostem dos afeminados, o gay másculo está sendo desvalorizado) , que sempre é recorrente nestas questões se assemelha aos de "racismo reverso", "heterofobia" e "misandria".

Em relação à "modinha", cabem outras observações. Por um lado há sim pessoas que estão revendo seus preconceitos em relação a essas questões. Eu mesmo, no decorrer da minha vida tive que rever e mudar meu pensamento em relação a isso. Já fui muito preconceituoso, até porque ninguém nasce "desconstruidão". Nesse sentido apontar que a pessoa faz por modinha não faz sentido. Por outro lado, existem sim pessoas que fazem um discurso anti heteronormativo, mas isso se dá só na teoria, pois na prática se revela igualmente preconceituosa.

Sendo assim, o importante é podermos nos fortalecer e para isso observar bem o mundo que nos cerca a fim de que nos fortaleçamos e também possamos rever nossos preconceitos e ter consciência dos nossos privilégios, quando existirem. Perceber que existem assimetrias nas relações e que o processo de rever essas coisas não deve ser uma "moda" para parecer desconstruído, palavra tão em evidência. Dessa forma pode-se ter um diálogo real e verdadeiro e, de fato, conviermos com a diversidade que tanto falamos.

domingo, 28 de maio de 2017

Internação Compulsória

Vi esse texto no feed do meu Facebook e quem compartilhou me disse que ele merecia ser lido. Li e reli várias vezes, até porque e me chamou a atenção por ser algo relacionado à saúde mental, tema do meu interesse.



Daí resolvi fazer esse texto.


A autora traz a experiência em um atendimento a uma pessoa envolvida com drogadição e como a pessoa tinha vários problemas, incluindo exploração sexual, AIDS , tuberculose e sífilis.A partir dessa experiência ela faz a defesa da internação compulsória, por pensar que é uma forma de salvar vidas para quem está em uma situação grave e, por isso entende como um ato de caridade. Quem é contra a internação, segundo o texto, são pessoas más e que buscam ganhos políticos que tem apoio de uma claque imbecil de esquerda.

É fundamental ouvir tanto as pessoas que passam por essa situação como as pessoas que trabalham com elas para que entendamos a situação não como caso de polícia, mas que tem a ver com saúde pública. Adriana nesse sentido traz a questão para esse campo a partir da sua experiência e pauta a questão no campo da saúde mental e não no policial.

Quem está em uma situação grave como a vivida na cracolândia, de fato, não é algo como "protesto". Existem inúmeras variáveis e uma questão como uso abusivo e dependência química devem ser vistsa por um ângulo mais abrangente, que leve em consideração também  questões sociais e econômicas, dada a situação de vulnerabilidade.

Ela aponta que existem pessoas que defendem a existência da cracolândia. Entre os críticos da internação compulsória não vi quem defendesse essa existência, mas se a autora o viu cabe realmente a crítica. Nenhuma pessoa sã pode dizer que a cracolândia é um lugar legal.

Vejo falhas no texto ao defender a pura internação compulsória sem um viés crítico a ela. Especialmente  vindo de quem atende pacientes com esses problemas. Há pesquisas tanto no Brasil (você pode ler esses texto aqui e aqui,como exemplos)  como eu em outros países que mostram que essa questão é muito controversa, pois não há resultados que afirmem que a internação compulsória é eficaz.  Aliás é bom lembras que existe em alguns países a ideia de internação "semi-compulsória" como substituição a uma pena em casos de crimes de delitos não graves com relação a dependência. Políticas Públicas devem sempre observar esses dados e não apenas relatos de casos pontuais, ainda que eles também tenham sua importância.

Outro erro e apontar que as pessoas que são contrárias à internação o fazem por não conhecer a cracolândia ou por não ter um familiar nessa situação. Essa afirmação é tão falaciosa quanto se eu aqui apontasse que todas as pessoas a favor da internação compulsória são malvadas que querem apenas tirar as pessoas de circulação prendendo-as.

Existindo a internação compulsória não podem ser negligenciadas as questões éticas envolvidas, especialmente no que diz respeito ao poder de decisão das pessoas, entendo que existem casos extremos que esse poder não existe. De qualquer forma para haver o tratamento, que não é apenas a internação em si, mas envolve mais coisas que não são pontuais, é necessário o envolvimento e a participação dos pacientes.

Outras implicações tanto do ponto de vista da saúde e o Direito, através de leis entende isso é a participação e envolvimento das redes que cercas as pessoas com esses problemas. Nesse sentudo cabe ao Estado oferecer condições para isso. No entanto não há esse aprofundamento no texto da autora, que prefere trazer uma visão sociológica do século XIX na qual se pensa uma sociedade em ordem e com pessoas desajustadas a essa ordem, pessoas que são chamadas de farrapos humanos que abrem mão de suas vidas sem fazer uma  crítica necessária sobre de que maneira o nosso modelo de sociedade cria as cracolândias.

Eu gostaria muito que ela, como profissional, relatasse além dos casos, quais as condições de trabalho e do tratamento oferecidos pelos agentes públicos, a forma como as famílias são envolvidas e em que sentido ela e seus colegas tem se mobilizado e cobrado dos governos para que a situação melhore.
Sendo assim, não cabe apenas afirmar que as pessoas contra a internação compulsória fazem uma claque de esquerda demagógica.

O que há é o questionamento necessário de como essa política tem falhas. E por se tratar de política pública de saúde isso deve ser levado em consideração. A pura retirada das pessoas das ruas e jogadas em clínicas. Muitas dessas clínicas, aliás, estão envolvidas no fundamentalismo cristão, que tem ganhado força no Brasil e o que se tem é o favorecimento desses setores ao invés de um tratamento devido Não é a toa que membros da chamada bancada religiosa tem interesse nessa forma de internação.

A partir do momento em que possa se fazer uma discussão mais ampla, a partir de descobertas que os pesquisadores de diversas áreas tem feito e trazido para o tratamento das pessoas envolvidas na dependência do crack (entre outras drogas) pode-se formular políticas que garantam que tanto o paciente tenha bons resultados e que pessoas como a Adriana possam realizar de forma plena e segura o seu trabalho.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

O sexo que é?

Li que esta semana a Ru Paul recebeu uma série de comentários agressivos e até mesmo ameaças por ter desclassificado uma participante do seu reality show. Li um texto que associa a violência cometida por parte do público gay à heteronormatividade. Vale a pena lê-lo aqui.

Eu não descarto a ideia do texto, mas penso que, sendo a própria heteronormatividade como uma das características de uma sociedade machista, gosto de ir além dessa ideia e pensar na própria construção das masculinidades hegemônicas tendo como um de seus alicerces a violência. Por isso sempre é importante refletir sobre os papéis de gênero.

Nos estudos de masculinidades e violência são recorrentes o uso de dados que associam o alto número de mortes violentas com o comportamento masculino. Homens jovens em especial lideram várias estatísticas de homicídios e outras formas de morte violenta.

Diversas áreas do conhecimento têm contribuído para essa reflexão, especialmente no que diz respeito aos aspectos da própria sociedade sobre o papel esperado para o comportamento masculino. Ser "homem de verdade" muitas vezes significa correr riscos e usar a violência como forma de resolução de conflitos. Nesse sentido a psicologia e a psicanálise também têm as suas contribuições.

Recentemente tenho procurado textos da psicanalista feminista Nancy Chodrow. Pelo que observei ela questiona a premissa tradicional freudiana- de base biológica, trazida pra psicanálise- e lacaniana - que relê Freud tendo como uma de suas bases a antropologia de Levi Strauss- a respeito da diferenciação entre meninos e meninas. Aliás estamos em tempos de maior questionamento a respeito do binarismo sexual, mas para aprofundar sobre isso seria necessário outro texto. Vou me ater a questão proposta por ela.

Nos Três Ensaios, Freud diz que a diferença sexual que as crianças fazem a partir do momento em que meninos e meninas pensam ser possuidores do pênis, até o momento em que o menino percebe que ele tem a menina não (complexo de castração) e a menina percebe que ela não tem o pênis (inveja do pênis). Lacan retoma isso no campo da linguagem e do simbólico em que a mulher é o "sexo que não é", ou, como dizia o meu ex professor Clauze, uma lógica do sistema de numeração binária 0 e 1. Ok, vai ter uma ruma de lacanianos dizendo que não é assim, que Mulher é um conceito, que não é a mulher real (ou da realidade) etc e tal, mas é fato que há críticas a sua obra nesse aspecto.

Chodorow coloca a noção de que ser homem não é uma afirmação fálica, mas sim uma negação do feminino. Ao invés de uma afirmação, o masculino se dá através de uma negação. Até relacionei nesse sentido com o ritual de passagem descrito na tribo Anga da Nova Guiné em que os rapazes, para fazer a transição para a vida adulta, devem engolir o semen de jovens mais velhos como forma de expulsar o efeito do leite materno ingerido quando criança.

Em nosso mundo ocidental, ser homem muitas vezes é negar tudo aquilo que é postulado como feminino. A aproximação com o feminino é motivo de piada, desonra e mesmo violência. E está na base das diversas formas da LGBTfobia. E de que maneira essa violência usada na construção do masculino atinge homens cis não heterossexuais, sendo nós também alvos dessa violência machista?

A nossa orientação sexual, por mais que existam várias discussões sobre se nascemos com ela ou se a aprendemos, é modulada ao longo dos anos. E os meninos ao longo do seu desenvolvimento vão aprendendo que a violência, independentemente de sua orientação, é a maneira como são resolvidos os problemas, que é a forma da afirmação de sua identidade, do seu ego.

É nesse sentido que um hetero torcedor de um time e um gay com sua diva musical favorita se aproximam. As escolhas que fazemos, sobre o que e quem amamos passa por um investimento narcisista e, diante da ameaça por parte de outra pessoa, de outro time ou preferência, a resposta, pra tentar manter esse ego masculino inteiro (tarefa inglória) se dá justamente pela violência.

Claro que aqui é bom observar que há discrepância grande entre os privilégios dos homens cis heterossexuais dos que não são, o que nos coloca em situação de maior vulnerabilidade. Ainda assim, esses aspectos da nossa socialização e a forma como isso está presente em nosso desenvolvimento psíquico não podem ser descartados.

Nesse sentido é importante percebermos esses aspectos das masculinidades hegemônicas e de que maneira ela nos afeta, de forma negativa, o nosso comportamento, bem como nossos sentimentos e a nossa possibilidade de expressão emocional (como o texto que eu mencionei já coloca). Que esse comportamento paradoxal que elege uma diva, mas estimula rivalidade, agressão e tudo mais não contribuem de forma positiva tanto na nossa realidade externa como em nossa subjetividade.

E também cabe o pensamento: ao invés de nós, homens cis, perguntarmos apenas "O que querem as mulheres", pois na maior parte das vezes a pergunta vem como forma de colocá-las como seres "complicados" é pensarmos "quem realmente somos e o que queremos ser" e perceber que as complicações, na verdade, são para todos nós e não tá baseada em nossa identidade de gênero.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

O alienígena que habita em mim

Esses dias me deparei com duas situações de amigos que me fizeram pensar sobre procastinações e conflitos. Na primeira, um amigo me dizia das investidas que recebia de um cara, mesmo ele estando em relacionamento monogâmico com seu namorado. Na segunda, a pessoa me dizia que estava pra baixo e que se encontra em conflito entre a sua bissexualidade e o fato de querer uma família nos moldes tradicionais.

Não dei palpite, mas pensei: por que essas pessoas não liquidam logo de uma vez? Por que essa necessidade de deixar pra resolver depois, ou de manter esses conflitos ao invés de resolverem logo isso de uma vez. Daí vem a voz do meu pai na minha cabeça com o velho ditado: você já olhou para o próprio rabo?

Pois então, olhei. Pensei na ruma de textos que queria colocar aqui. Nas caminhadas que eu queria fazer. No eu rumo profissional. Nas condições para ir a um encontro em uma cidade próxima. De reduzir a quantidade de comida. De ler mais. Escrever mais.

Existe uma parte de nós que é nossa, mas a enxergamos como algo de Outro. O meu exemplo mais simples está num sonho de uma invasão alienígena - logo, algo externo- e eu muito puto, vou falar com o chefe da invasão que me diz que quem comandou aquilo fui eu mesmo. Obviamente, aquele foi o ponto chave para eu acordar.

Crio então esses ritos: para caminhar, preciso de um dia tal, de uma playlist tão. Olha o trabalho! Pra o rumo profissional tenho medo de encarar as minhas próprias potencialidades por não querer encarar de frente certas coisas. No encontro, eu já tinha visto os horários dos ônibus e se não soubesse, tem como ficar sabendo. Em relação a escrever, ler e reduzir a comida, só começar. Só começar?

O fundamental nesse sentido é admitir que existe essa parte alienada. O alienígena que comanda essa invasão que parece alheia, mas é minha mesmo. Tal como existe o jogo erótico entre aquelas duas pessoas mesmo uma estando em relacionamento monogâmico ou como o aquele que deseja a sua liberdade pra ser quem é, viver de forma plena sua sexualidade mas ainda se prende a certos moldes que parecem mais aceitáveis socialmente.

Aliás, digo que as conversas que aconteceram esses dias com esses dois amigos, mais que me dar um estalo para pensar sobre esses moldes que criamos e nos prendemos, serviu para pensar "oi, o que eu também faço comigo mesmo nesse sentido?"

Até chegar o momento de admitir que há uma escolha sim que pode me fazer mais feliz, ainda que ela implique na quebra de um estado outro que mantém um certo comodismo, que me faz apontar para o chefe da invasão e querer satisfação. Admitir que o enredo, sou eu mesmo que crio. E que sim, ele é possível de contradições, dificuldades e não é algo pronto e linear. E não há nada de errado nisso.

sábado, 22 de abril de 2017

Caligrafia

A página do Bullet Journal divulgou esse texto sobre dicas de como melhorar a sua caligrafia. Eu que ando acompanhando muito essas coisas de organização e tudo o mais - até porque eu sou uma pessoa bem desorganizada- achei as dicas be legais. E isso apareceu justamente num momento em que estou dando aula pra uma adolescente preocupada com sua letra para a redação que fará no ENEM no fim deste ano.

Foi aí que me lembrei da minha relação com a escrita. Quando eu comecei a escrever, na infância, tinha o hábito de rabiscar nas paredes. Escrevia muita coisa com letra de forma. A letra cursiva fui aprender no colégio e durante um tempo era considerada feia. A professora do CA (atual primeiro ano) dizia que eu não tinha coordenação motora e que deveria fazer vários exercícios e tal.

Interessante como uma coisa aparentemente simples resvala em outros aspectos. Sempre gostei de ver esportes , mas sempre fui uma negação tanto no futebol, como no vôlei (dois dos meus favoritos) por conta dessa questão da coordenação motora. Sempre me achei ruim em habilidades manuais ou mesmo para fazer desenhos. De alguma forma as minhas criações deveriam aparecer. Voltemos à caligrafia.

Eu tinha um amigo de infância que tinha uma das letras mais bonitas da turma. Ele era meu vizinho também e eu admirava muito a letra dele. E a letra transparecia o jeitão vaidoso dele, sem falar que era um dos rapazes mais bonitos da turma, até porque ele já era adolescente a nós éramos crianças e ele já frequentava festas e lugares que eu ainda não ia, pela idade.

Depois que mudei de colégio e nos separamos foi mais ou menos na mesma época que minha mãe comprou um daqueles livros de caligrafia e daí comecei a ajeitar minha letra. Eu digo que minha letra arrendondada tem muita cara de professora primária e eu ainda hoje tenho ela como ferramenta, uma vez que dou aulas e preciso dela bem legível.

E ao longo dos anos sempre curti ter agendas, cadernos e tudo o mais. Daí entendi que a forma que eu poderia mostrar alguma capacidade minha não seria pelo esporte ou por aqueles maravilhosos desenhos, mas pela criação de textos. E eu sempre gosto, muitas vezes, de fazer o rascunho, escrito, para depois digitar. Isso serve também quando leio algum texto ou tenho que produzir alguma resenha sobre.

Voltando a minha aluna, compartilhei um pouco disso com ela, E foi legal ver que a sua última redação já estava bem legível, fácil de ser entendida e melhor do que os textos anteriores. Ela comentou comigo que gosta de escrever coisas, especialmente frases e citações que ela gosta. Achei isso um bom exercício.

E gosto muito quando vejo a letra de alguém, especialmente dos amigos que fiz pela internet e que, por razões óbvias, nos comunicamos pelos caracteres de computador/celular. Acho bem interessante ver a caligrafia por achar que tem algo da pessoa ali - ainda que eu reconheça que a grafologia não é científica- assim como o rapaz vaidoso lá da minha infância ou da menina insegura com a ruma de provas que tem pela frente.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Psicologia e relações raciais

Essa semana, o Waltinho compartilhou esse texto comigo sobre Virgínia Bicudo (1915-2003). Socióloga de formação e uma das primeiras psicanalistas, ela é referência nas questões de relações raciais no Brasil. Daí, na nossa conversa, a ausência do nome dela na minha formação me fez pensar no quanto as questões raciais foram negligenciadas na minha graduação em psicologia. E daí no quanto é importante refletir sobre essas questões em termos de saúde mental, o que engloba também psicologia e psicanálise.

Na minha adolescência eu cogitei em seguir o curso de Ciências Sociais, mas daí pensei: vou ser o negão clichê que, por ser preto, vai obrigatoriamente pensar sobre o racismo. Por várias outras razões acabei me interessando por psicologia. Só que com o tempo eu pude desmontar essa ideia de clichê e perceber o quanto essas questões precisam ser pensadas. E não apenas no campo das Ciências Sociais.

No meu curso eu enveredei pelo campo da Psicologia Social e, obviamente, pensar sobre várias questões e contribuições de outros campos do conhecimento. Acabei direcionando meu trabalho para pesquisa em temas como gênero (masculinidades), prevenção de violência, sexualidade e adolescência. E isso no campo prático também, no trabalho e não apenas na parte acadêmica. No entanto, nesses campos, a questão racial sempre foi colocada de forma muito superficial, isso quando aparecia.

Tive alguns contatos e experiências que foram positivas durante esse tempo. Tive uma colega de trabalho, assistente social de formação, também negra, que sempre apontava pra mim a necessidade de pensar sobre tais questões. E nos congressos que participei me lembro de apenas um trabalho sobre, e de forma muito voltada pra clínica, sobre a questão do racismo e as implicações da psicologia.

Entre as várias leituras possíveis que faço da psicologia duas delas me ajudam a refletir sobre questões raciais. A primeira é que ela pode tratar do desenvolvimento das potencialidades individuais de cada pessoa e a segunda é que ela lida com o sofrimento psíquico. Neste sentido a questão negra está muito focada nos seus aspectos sociais, mas pouco é pensado em como o racismo age individualmente, no desenvolvimento das pessoas. Por outro lado, uma visão do negro como forte, "aquele que aguenta tudo" traz uma ideia que, discutir saúde mental, é coisa pra gente branca, rica e "fresca", anulando essa possibilidade para as outras pessoas.

Ao longo desse tempo tenho aprendido um pouco mais sobre esse tema. Entre eles penso muito no trabalho do Valter DaMata neste campo e que merece ser lido. Sendo que eu sinto a necessidade de ir mais além, tanto no campo teórico como da atuação profissional.

Há muito tempo tenho refletido sobre a minha formação como psicólogo. Eticamente, ela deve servir para contribuir de alguma forma para a sociedade. Em um país em que o racismo é estrutural e institucionalizado, eis aí um campo para que eu não apenas atue ou pesquise, mas que fundamentalmente sirva para aprendizado e desenvolvimento, tanto em relação às minha questões como a das demais pessoas pretas.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Sobre o sonho da "Viagem"

Momento de pensar sobre mais um sonho que eu tive. E este foi uma forma de mostrar aspectos tanto sexuais, especialmente os masculinos, lotado de símbolos fálicos.

Primeiro tem a questão da viagem. Estou em um carro e tal e fazendo massagem em um homem que está no banco da frente e é inevitável que eu não me lembre de uma cena em uma das festas da época de faculdade. Eu me lembro, já na vida real,  de que estava com 3 colegas e a menina que estava do meu lado fazia massagem no motorista, que dali a pouco viria a ser seu namorado. Eu pra poder imitar e me sentir junto ao grupo faço o mesmo na colega que está no banco do carona. Só que eu não me lembro quem era a colega. O fato é que o sonho substituiu a moça por um rapaz, cuja imagem é de um ator que sempre faz papéis menores em novelas. É o caso de pensar tanto na quebra de tabus, de reverter o papel masculino de força pro carinho e a presença de um homem que mal tem presença em novelas, a forma de dramaturgia favorita minha. Talvez seja a necessidade da presença de um homem que não se destaque tanto, que não tenha essa necessidade, dentro de uma representação lida como mais "feminina". E ainda, a palavra "viagem" (que aparece duas vezes neste sonho) remete ao apelido de um grande amigo de faculdade, que entre os homens que conheci, justamente era um cara menos heteronormativo.

Daí surgem postes. Um novo no meu terreno cujo sentido não entendo e os cabos e as bolas (isso mesmo, Dr Freud). E a ideia de dar e receber energia. Isso tem muito, mais muito a ver com o papel sexual, não só de ativo e de passivo, mas bem como a questão do saber receber aquilo que vem do outro, que é uma questão grande pra mim. Sem falar que há um fiscal, talvez ali uma representação do supereu, uma cobrança. Um símbolo fálico (a torre) que parece ser algo que já conheço e que tecnicamente deveria estar do lado de fora pois há nela muita energia e no entanto quando eu me ergo (auto afirmação?) ela é algo pequeno e não substitui o que eu já tenho (o poste velho) e que no entanto precisa ser mudado. Resumidamente é como se dissesse que a minha auto-afirmação precisa de coisas que precisam ser mudadas, mas que isso depende de mim, sem nenhum ônus, não serei cobrado por isso (a ausência de multa). E no frigir dos ovos o fiscal não fiscaliza nada, é só um ator, alguém que busca o reconhecimento.

E esse reconhecimento vem das mulheres. Interessante observá-las no sonho, pois parte da ausência da figura paterna e presença da materna. E na noite antes de dormir conversava com amigos as melhores coisas da vida (comer, transar e dormir, nessa ordem) e eis que surgem ali, ao meu lado uma série de coisas gostosa em necessidade de esforço pra obtê-las. No plano real tenho preguiça de ir à padaria e tenho um vizinho que de vez em quando passa vendendo pão. Os bolos e os doces são exatamente um símbolo desse prazer, feito por mãos femininas. O "feminino" que há em mim, familiar, tão próximo e que eu por vezes desconheço (faz tempo que elas não me veem, o fato de desconhecer que elas estão ali perto de mim vendendo aqueles bolos).

Por fim aparece mais uma vez a "viagem", que foi o eufemismo pra morte do meu pai. A viagem significa isso, uma mudança de lugar, uma quebra de algo que está sempre presente em mim (o velho poste) por um novo, que dependerá de mim para trocá-lo. A morte do pai, ou seja, não é mais ele em campo, mas eu. Tanto é que há isso na parte final do sonho: meu pai querendo verificar se tudo já foi arrumado quando eu e minha mãe já fizemos isso e então vem a desculpa de querer verificar o sono. Mas eu preciso entregar-lhe o celular com a luz pra poder ver. Eu sou então a minha própria luz.

domingo, 26 de março de 2017

Relacionamentos ruidosos

A partir de uma conversa que tive ontem, fiquei pensando nos ruídos na comunicação que existiram e existem nos meus relacionamentos afetivo-sexuais. E obviamente, sei que eles nos acompanham desde sempre, desde a brincadeira do telefone sem fio às discussões pessoais (reais e virtuais). Alguns acham que a forma de evitar tais ruídos nas relações é falar menos, pois complicamos demais as coisas. Mas sendo o complicado inevitável é importante sim que coisas sejam ditas e pensar em como elas são ditas, seja pra quem está transmitindo ou recebendo a mensagem.

Existe uma piada, um esteriótipo que me incomoda demais, afirmando que a famosa DR (discussão de relacionamento) é "coisa de mulher". Os homens, em tese, mais racionais e objetivos, não teriam tempo a perder com coisas menores, com complicações sem sentido. Acontece que tais complicações são nossas emoções, que existem independentemente do gênero/identidade sexual da pessoa, e menosprezar tais emoções nada mais é que uma manifestação machista que, ao considerá-las como atributos femininos, as desprezam. É a base do famoso "homem não chora".

Outro ponto a se pensar é o que Lacan chama de "imaginário". Neste vídeo, pra quem tiver interesse, há uma explicação boa sobre esse imaginário e as outras duas instâncias pensadas pelo psicanalista francês.  Em suma, a partir desse conceito julgamos que aquilo que dizemos é imediatamente percebido pelo outro, quando na realidade não é isso que ocorre, pois as nossas palavras vão passar pelo mecanismo de interpretação de alguém que é diferente de mim, e pelo imaginário, julgamos que esse outro é igualzinho a nós mesmos (espelho)e que assim vai ter total compreensão. E não tendo isso, surgem os ruídos.

Pensei nesses dois pontos, o machismo e a relação imaginária, em exemplos da minha vida. Ouvi de algumas pessoas com quem já tive e tenho relacionamentos que a minha mania em querer falar sobre as coisas, discutir, analisar e interpretar é uma perda de tempo e que as coisas poderiam ser bem mais simples se eu não complicasse tanto. Paradoxalmente lido com uma cobrança justa de que me fecho demais e não coloco pra fora o que realmente sinto e assim não tem como o outro ficar sabendo o que se passa comigo. E também há o caso de me falarem que há sim a demonstração de sentimentos, de carinho, afeto e atenção, não por palavras, mas por outros gestos que por vezes não dou atenção, pois me preocupo com as palavras. E aí em parte dou razão pois existem sim essa dificuldade de interpretação (imaginário) e ao mesmo tempo de colocar meus sentimentos pra fora, por conta desse aprendizado machista em lidar com as emoções.

Já ouvi alguns amigos homens cis heterossexuais chegarem pra mim e dizer que no relacionamento entre dois homens as coisas seriam mais fáceis, inclusive no sexo. Que a pergunta clássica "você é ativo ou passivo?" já é uma forma de comunicar aquilo que se sente e gosta e seria assim uim facilitador. Concordo em parte com isso, mas sei que no relacionamento entre dois homens as coisas vão além disso e há respostas a essa pergunta clássica que não são lá muito bem aceitas. De qualquer forma eu devolvo: por que vocês não conversam com suas parceiras e, fundamentalmente, não as escutam? Aí diante disso segue-se aquela cara de "Sinhá Mariquinha, cadê o frade?"

Relacionar-se com homens é esbarrar nessa atitude machista da não necessidade de não se discutir sobre o que se gosta ou incomoda de forma mais profunda, pois isso seria uma forma de complicação. É lidar também com o imaginário de esperar uma resposta "x", quando o outro diz "y", jurando que x=y. É lidar com o bloqueio das próprias emoções também, e de saber escutar as emoções e desejos do outro.

De qualquer forma os relacionamentos vão esbarrar nesses ruídos. Não há uma comunicação fluida, 100% compreendida. No entanto, quebrar com certas amarras há tanto tempo estabelecidas, permitindo uma valorização da emoção, falar francamente sobre os desejos (inclusive os sexuais), de forma que não sejam menosprezadas é fundamental pra que se tenha uma relação franca, segura e gostosa para todos os envolvidos. Não é tarefa fácil, pois não é receita de torta de 2 minutos num vídeo do Tastemade, mas vou tentando.

quinta-feira, 23 de março de 2017

O lugar de fala como lugar de escuta

"Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto..." (Fala, Luli e João Ricardo)
Creio que posso estar me repetindo aqui, mas estou há tempos para colocar algumas reflexões sobre a questão do lugar de fala. Um dos motivadores foram alguns textos do Tullio, que também abordam a questão sistêmica, da qual quero comentar aqui também.

Resolvi por um tempo, em redes sociais, ler mais e ouvir mais as pessoas do que necessariamente sair emitindo opiniões. E um desses aprendizados foi sobre o chamado "lugar de fala" e as "vivências" no que diz respeito à minorias. Grosso modo, por esse princípio só um negro pode apontar e falar sobre racismo, mulheres sobre feminismo, bissexuais sobre bifobia e por aí vai. E nesse aspecto li tantas ideias que apoiam essa noções como as de críticas, as mais diversas. Aqui vou destacar duas vertentes que me chamaram a atenção neste período.

Uma de caráter mais racionalista, aponta que o importante não é a pessoa que fala - isso seria uma forma de falácia "ad hominem - e sim aquilo que é dito. E a partir do que é dito, parte-se para a verificação se aquilo é verdadeiro, factual, se pode ser corroborado. Logo, o lugar de fala estaria dando uma ênfase mais subjetiva para a pessoa que fala do que para a observação dos fatos.

Outra, que observei em alguns discursos da esquerda, aponta o lugar de fala como algo "pós-moderno". Seria uma deturpação da luta das pessoas que são oprimidas, pois ao valorizar essa subjetividade, a importância é dada em aspectos individuais da dita vivência, um vício burguês em detrimento de uma visão social, coletiva. E que a defesa das várias identidades esconderia a luta que realmente interessa, que é a luta de classes. Os aspectos históricos e sociais nesse sentido estariam desprezados em nome da afirmação do eu.

Penso que nas questões que me dizem respeito eu me fortaleço sim com argumentos mais factuais e jamais vou desprezar as condições sociais e econômicas diante de uma certa luta. Um gay da Vieira Souto não possui, de fato, as mesmas condições e realidade de um do Pavão-Pavãozinho, no mesmo bairro. No entanto para além desses aspectos mencionados, são fundamentais ter uma visão sistêmica das coisas e também o lugar da escuta.

Um exemplo entre essas críticas foi exemplificado comparando Gregório Duvivier e Fernando Holiday. O primeiro foi criticado por escrever uma coluna na Folha de São Paulo um texto antirracista e sendo ele branco não poderia fazê-lo por não ter o tal "lugar de fala". O segundo por sua vez, ainda que tenha o local de fala de duas minórias (é negro e homossexual) tem um discurso LGBTfóbico e contra as lutas do movimento negro, o que exemplifica a visão racionalista de que o mais importante é o que é dito do que quem fala. Ou seja, antes um Gregório branco como aliado que um Holiday negro bostejando o de sempre, agora com poder legal de sua vereância,.

Nesse sentido cabe uma visão mais sistêmica das coisas. Legal ter aliados e não tenho nada contra o Gregório se posicionar contra o racismo. Acho muito importante esse tipo de posicionamento. Mas cabe a pergunta; quantos colunistas negros debatendo racismo existem naquele e nos demais grandes veículos de comunicação? E no caso do Holiday, quantos negros há na Câmara de Vereadores paulistama? E quantos negros fazem parte do chamado Movimento Brasil Livre e o mais importante, quantos negros financiam esse movimento.

Não se trata aqui de livrar a cara do Holiday ou demonizar o Gregório. Penso que uma visão maior das estruturas pelas quais os discursos de combate as diversas formas de opressão circulam e, tão importante quanto, o quanto e como essas mesmas estruturas muitas vezes silenciam as falas. Daí também a necessidade do lugar de escuta.

Ainda sobre o lugar de fala e vivências e no quanto o subjetivo também é importante, eu me lembro que aos 11 anos, um colega de turma que também era meu vizinho, estava numa espécie de fofoca-bulying com a turminhha da sala dele comigo, me zoando pelo fato de eu ser filho do porteiro do prédio onde morávamos. Ao comentar com minha mãe - e disso nunca me esqueci- ela me disse "não espere que o grupinho te defenda. É você mesmo que tem que saber se posicionar. E não deixe um branco falar por você sobre o racismo que você sofre".

Outra lembrança minha vem da época do meu vestibular, a minha amiga Ana me disse "Odilon, como você quer ser psicólogo se você fala muito mais de você e ouve pouco?". Fiquei pensando nisso e a experiência ao longo dos anos, especialmente ouvindo as vozes de adolescentes negros em sua grande maioria e moradores de favelas cariocas me ensinou o quanto era importante ouví-los e ao mesmo tempo trocar as experiências.

Ainda questiono comigo mesmo se sou um bom ouvinte, mas tenho feito vários exercícios nesse sentido. E também observado mais as coisas com mais sensibilidade e entendendo certos privilégios que tenho enquanto homem cissexual. Há um mês, por exemplo, eu e meu namorado recebemos uma amiga muito querida na casa dele e junto havia um amigo hetero dele também. Ela é uma pessoa inteligentíssima e estava muito interessado no que ela tinha pra dizer, mas notava o quanto ela era interrompida pelo meu namorado e mais ainda pelo amigo. Então no momento em que em tese eu daria continuidade à conversa eu me calava pra poder ouvir a nossa amiga. Obviamente não entendo o meu gesto de "oh o homem bonzinho que deixa a moça falar, quer biscoito?", mas o mais importante pra mim foi me permitir mais ao que ela tinha pra dizer e pensar na minha ansiedade e nos meus privilégios nessas aparentes coisas cotidianas. E a partir da fala dela eu respondia dando continuidade ao diálogo E foi maravilhoso poder ouví-la mais.

A partir dessas e de outras experiências penso que uma boa observação dos fatos e fazer os diversos recortes, inclusive de classe, no que diz respeito a fala de pessoas de grupos marginalizados é fundamental. Assim como abrir mais espaço para que essas várias vozes falem, se manifestem e principalmente, se escutem. Entendo que o motor das mudanças sociais de certos grupos parte de dentro deles mesmo para aí sim ganhar espaço para além do próprio grupo. E há inúmeras lutas. Mas isso só é possível com o fortalecimento sim das pessoas dos ditos lugares de fala, para que tenham cada vez mais espaço para o que elas tem a dizer e, fundamentalmente, que haja espaço de escuta para que se tenha efetivamente um diálogo que ajude a promover mudanças de fato.

E isso não pode se restringir apenas no próprio grupo, até porque dentro de um grupo que divide uma mesma categoria identitárias há inúmeras diferenças. Há de se questionar as estruturas de poder que dão sustentação a isso, a observação das relações que existem nos sistemas e mecanismos de opressão e partir para um enfrentamento que não despreze o que é factual também. Sem amarrar esses diversos pontos e sem um lugar para a escuta, o chamado lugar de fala vai se restringir sim a uma mera vivência de webativismo em rede social mais preocupada em "lacrar" que realmente propor algo que venha garantir direitos.




                                     

sexta-feira, 17 de março de 2017

Da performance às descobertas

Quando comecei a pesquisar sobre masculinidades, a minha antiga supervisora me passou uma série de textos sobre o tema. Entre eles havia um que me chamou a atenção que era um que ligava a expressão sexual masculina como uma "performance". Não no sentido de Judith Butler, mas de uma forma mais geral.

O que eu pude constatar na minha própria vida, na de amigos meus e no trabalho era exatamente o quanto era importante não só apenas obter sexo, mas ser o cara que não brocha e conquistador para caracterizar bem essa performance. E ultimamente vendo páginas no Facebook, tanto gays quanto com presença de heteros isso fica bem visível, incluindo entre aqueles que se colocam como desconstruídos.

Essa relação da performance com as diversas masculinidades passaram a me chamar a atenção. Os homens hetero preocupado mais com suas conquistas. Alguns com o próprio prazer. Outros, que dizem que o homem de verdade tem que fazer um bom sexo oral na mulher, na verdade mais preocupado com o seu desempenho em si que realmente com o prazer da parceira.

Em algumas páginas gays vejo a mesma coisa. Há na auto afirmação sexual mais uma preocupação de se mostrar narcisicamente como fazem o sexo, ou que possuem atividade sexual. E não tiro o meu corpo fora, pois muitas vezes eu mesmo me pego pensando ou agindo dessa forma.

Daí faço uma ponte com a questão da alteridade e dos saberes, tal como mencionei na postagem anterior a essa. Na questão da alteridade há uma relação em que o sexo a ser dito, sabido pelos outros, como forma de marcar um "eu sou assim". Como selfies no instagram. Aliás sobre essa relação narcísica, o professor e psicanalista Christian Dunker, coloca bem neste vídeo: essa afirmação do eu não é uma maneira de se sentir grande e absoluto, mas uma tentativa de colocar num pequeno espaço a precariedade do próprio eu. De repente com essas formas de expressão sexual pode ser algo assim.

No que diz respeito ao saber, pensei em "Amar Verbo Intransitivo" do Mário de Andrade, no qual o pai de um jovem paga uma mulher, disfarçada de ama-seca, para tirar a virgindade do filho. Esse saber desse pai e da mulher era uma forma de, lá no começo do século XX, colocar o menino dentro do mundo masculino, torná-lo homem. Passados cem anos e com uma série de mudanças comportamentais e inseridos no mundo capitalista, nossa "fraulein" são os vídeos pornôs com homens com pirocas gigantescas, que não brocham e seguem um roteiro meticulosamente definido. Claro que com a crescente exposição da internet, tem crescido também o número de vídeos amadores, mas até esses passam por uma seleção, uma escolha do que vai ser postado.

Não quero também fazer aqui uma "Crítica Social Foda" ou demonizar a sexualidade ou ficar determinando regras de como cada um exerce seu prazer. Esse texto na verdade é uma reflexão que se restringe as minhas vivências com meu prazer e o que tem surgido de novo nesse sentido. E não consigo deixar de relacionar essas minhas vivências com o mundo que me cerca.

Entre o segundo e o terceiro namoros meus vivi uma série de novas experiências e até mesmo desilusões amorosas. No que diz respeito a papéis, de viver um período de cinco anos solteiro. E isso passa também pelas primeiras experiências com outros homens negros como eu, mas isso seria tema para um outro texto. Enfim, muita coisa se passou e com essas novidades, ganham-se novos saberes.

No atual namoro essa descoberta ainda continua. Tesão em partes do corpo até então ignoradas e a experiência de ter o primeiro namoro oficialmente aberto. E diante disso há sim momentos em que precisam ser confrontados saberes passados que, mesmo não fazendo mais sentido no presente, ainda persistem. Especialmente neuras em relação à performance sexual, a necessidade de conquista e de auto-afirmação, enfim, tudo que foi mencionado anteriormente. De qualquer forma eu digo que o momento atual, perto dos 40 anos, tem sido a fase mais feliz da minha vida nesse (e em outros) aspecto da minha vida.

E isso de dá pelo processo de descoberta. Na relação sinto que me descubro também quando estou com o outro. Aliás um item fundamental que descobri numas das minhas ficadas naquele hiato de cinco anos foi isso: estar com alguém que me deixe à vontade e que eu permita o mesmo a essa pessoa. Acho que é fundamental para que descobertas, prazeres novos, enfim que muita coisa boa aconteçam

Assim penso que essa mudança de percepção sobre nós mesmos pode realmente provocar uma grande mudança, até mesmo para questões ainda maiores de nossas vidas. Tenho reparado por exemplo o quanto tem sido importante a necessidade de escuta numa conversa, uma vez que tendo a falar demais de forma até rápida atropelando tudo. Enfim, esse novo exercício pode provocar uma mudança naquela velha pergunta de sempre "quem sou eu?"

quinta-feira, 16 de março de 2017

Casa do Saber

O título dessa postagem vem da forma como o Evandro costuma chamar os motéis, ou hotéis pra finalidade sexual. Acho que ele nunca me disse a razão de usar esse nome, mas sempre acho interessante. E sim, creio que estou me repetindo nesse blog escrevendo sobre essa relação (saber e sexo), mas esse texto é base pra depois pensar sobre outro de caráter mais intimista.

Freud lá nos Três Ensaios, fala sobre a pulsão escopofílica e a pulsão de saber, na formação da sexualidade humana. A primeira, o ato de ver, seria derivada do ato de tocar e entendida como uma base, um caminho para a excitação da libido. Já a pulsão de saber, que para o pai da psicanálise aparece entre os três e os cinco anos de idade, é vista não como subordinada à sexualidade, mas uma forma sublimada de dominação. Por outro lado ela apresenta relação forte com a vida sexual, pois ela aparece de forma muito precoce e, talvez a inscrição da criança nessa pulsão de saber se dá justamente por questões sexuais.

Mais tarde, Foucault fala sobre a relação que os saberes apresentam com o poder (Yes, citei Fucô!)  e entre outras coisas na forma como eles serão disciplinadores, passando pelo psiquismo e pelo corpo e, consequentemente com a sexualidade.

E deixadas às referências dos autores anteriores, eu me lembrei que aos 11 anos assisti à novela Tieta pela primeira vez. Na primeira fase, a jovem protagonista se envolve com um homem mais velho que lhe diz que vai lhe ensinar o "ipsilone duplo" (acho que dá até pra fazer um link com o Canguru Perneta do Caco Antibes) e a partir da descoberta pelo pai que ela estava tendo relações com aquele homem, ela é expulsa de casa (olá disciplina), dentro do contexto machista de Santana do Agreste e, anos depois ela volta pra cidade, mais "experiente" e, ironicamente, será a tia que ensinará para o sobrinho virgem seminarista os prazeres do sexo. Outra relação, essa observada mais como de poder do que sexual, um abuso na verdade, é com o coronel Artur da Tapitanga, que quando quer que suas "rolinhas" lhe satisfaçam sexualmente, diz-lhes que vai ensinar o abecedário.

Acabou que descambei pra análise de uma telenovela que vai reestrear em breve no Viva, deixa eu segurar o freio de mão que daqui a pouco começo a fazer análise sobre Maria Imaculada, que é praticamente a Sheherazade do Agreste.

Voltando ao ponto, não deixa de ser interessante em pensar sobre essas relações sobre saber e poder. Eu estou sempre citando esse livro do Robert Hopcke, que entre outras coisas fala na relação puer-senex entre homossexuais, isto é, os jovens com homens mais velhos. Na compreensão deste junguiano, essa relação se dá não pelo fato do jovem querer um substituto para o seu pai, como poderia se pensar dentro do Complexo de Édipo freudiano, mas por querer encontrar alguém que o guie (pelo saber, penso eu). Os homossexuais não possuem rituais para as suas práticas (o texto é de 1989, só pra ressaltar), sendo o mais emblemático o casamento, Então a busca de um homem mais velho seria uma forma de compensar essa ausência de ritual, por encontrar alguém já inscrito na homossexualidade. Eu extrapolaria e diria que seria para uma das diversas formas das homossexualidades,

E me pego refletindo agora, o que tem toda essa papagaiada puer-senex sobre a ideia do saber?

Refleti sobre o que meus amigos que se envolveram com homens mais velhos (até eu mesmo, aos 21 anos) e quando confrontados (tudo que sai do esperado, como uma relação entre pessoas com grande diferença de idade é questionado, não?) sobre as razões do jovem querer alguém mais velho as respostas eram desde "tem mais experiência", passando pelo "é mais estável emocionalmente, diferente de outro jovem" até mesmo por alguns que queriam pessoas mais velhas pois eram mais "discretos, não dão muita pinta" pois talvez haja aí a ideia de que uma pessoa de uma geração anterior fosse menos "fechativa", pois viveu numa época de maior repressão.

De qualquer forma essas respostas e as reflexões que podem ser feitas a partir delas mostram o quanto desse saber pode ser capitalizado nas relações de acordo com os próprios desejos (alguém que saber amar, alguém que saiba ser discreto) entre tantas outras coisas.

A questão é que na realidade, assim como as instituições de saber que Foucault menciona, não são as mesmas por passarem por transformações, os saberes mudam, penso também, isso não se dá dentro das próprias relações? Mas aí é um outro questionamento: o que ainda está pra ser descoberto, seja na "casa do saber" ou fora dela?