domingo, 19 de fevereiro de 2017

Geração Y?

Agora de tarde o Vando me mandou esse texto, pois achou que era minha cara. Acho que ele se lembrou o quanto eu me empolgo com esses termos usados a respeito da geração Y, X, Millenials e tudo o mais.

O texto é longo e não sei se consigo resumir a ideia dele. Basicamente ele faz um comparativo entre a geração anterior, que não dispunha da tecnologia atual e conseguia se divertir e sustentar uma família com a atual, que tem milhões de ferramentas a sua disposição e no entanto ganha mal e tem todo o seu tempo tomado pelo trabalho.

A ideia que aparece no texto não é nova. Um dia desses o jornalista Xico Sá comentava o quanto se achava que nas redações de jornais as coisas mudariam quando as máquinas de escrever fossem substituídas pelos computadores e que, na prática, os jornalistas estão, atualmente, trabalhando mais e levando muita coisa pra fazer fora do horário de trabalho.

Isso levou o autor a questionar se de fato estamos vivendo uma geração livre quando na verdade somos uma geração de escravos. E que ao mesmo tempo, no Brasil, estamos submetidos às imposições dos clientes e que há uma exigência verbal de cordialidade para não ofender os clientes. Que o brasileiro "está acostumado ao mando" e que estamos formando uma geração de "bebês de meia idade".

Apesar de gostar da zoeira com esses nomes de gerações, eu acho que são generalizações complicadas e ao mesmo tempo falsas. Antes de qualquer coisa, convèm colocar uma das "n" definições que se encontra pra "geração Y" na internet. Tomei essa desta matéria da revista Galileu que, ao que consta, está de acordo com a ideia do autor do texto:
esses jovens são os representantes da chamada Geração Y, um grupo que está, aos poucos, provocando uma revolução silenciosa. Sem as bandeiras e o estardalhaço das gerações dos anos 60 e 70, mas com a mesma força poderosa de mudança, eles sabem que as normas do passado não funcionam - e as novas estão inventando sozinhos. "Tudo é possível para esses jovens", diz Anderson Sant'Anna, professor de comportamento humano da Fundação Dom Cabral. "Eles querem dar sentido à vida, e rápido, enquanto fazem outras dez coisas ao mesmo tempo."
Folgados, distraídos, superficiais e insubordinados são outros adjetivos menos simpáticos para classificar os nascidos entre 1978 e 1990. Concebidos na era digital, democrática e da ruptura da família tradicional, essa garotada está acostumada a pedir e ter o que quer.

Vivemos num país, segundo dados do IBGE de aproximadamente 190 milhões de habitantes. Se tomarmos a faixa etária da dita geração Y, ela representaria, em 2010, 26% da população aproximadamente. Imaginemos então o quão heterogênea essa parcela que representa mais que 1/4 dos brasileiros.

Se tomarmos como referência a classe média, parte do texto do autor pode fazer sentido. No entanto a realidade é mais complexa a apresenta bem mais variáveis do que "um bando de mimados" como pretende esse texto.

Muita gente sequer teve condições de terminar o ensino médio. Ainda temos casos de analfabetismo funcional na população, ainda que tenham ocorrido avanços no ensino fundamental nas últimas décadas. As escolas públicas, em sua maioria, estão em condições ruins, seja na própria estrutura material, como no apoio ao docente. Daí com essa precariedade no acesso ao ensino que parcela pode se dar ao luxo de pensar "vou criar uma startup" ou "quero um emprego com a minha cara com mil brinquedinhos no escritório" ou "vou fazer home office". A maioria das pessoas estão é mesmo encarando um transporte coletivo precário, saindo cedo de casa e chegando tarde ou fazendo mil malabarismos pra ter uma renda minimamente decente.

Não descarto a crítica em relação a suposta libertação que poderia vir com essa tecnologia. Agora, querer resumir esse grande contingente de pessoas a um bando de mimados ou que os clientes são pessoas mal acostumados a mando é reducionista. Isso pode funcionar - já que o texto usa a escola como exemplo- numa escola particular do Leblon. Na periferia de Araruama, o esforço dos professores é fazer com que os pais participem das reuniões ou por vezes tem que se envolver com casos de violência.

Claro que não cabe aqui fazer uma outra generalização do estilo "com a galera da baixa renda tudo é ruim", pois aí tem-se um novo reducionismo. O que precisa ser questionado é esse conceito de geração "x,y,z"que tenta agrupar tamanha heterogeneidade, ainda que eu entenda que o impacto das mudanças teconológicas atinge também os mais diversos grupos em diferentes estratos sociais.

Só pra finalizar vou trazer um pouco do que acontece aqui em Araruama, uma vez que trabalho com jovens, tanto de classe média como de classe mais baixa, sabendo que essa realidade está longe de representar sequer todo o município, menos ainda o Brasil.

Araruama é uma cidade que historicamente foi ligada à agricultura e pecuária e que a partir do século XIX teve expansão econômica por conta da produção do sal, que foi perdendo a força ao longo do século XX. No final desde mesmo século, a cidade testemunha um crescimento de pessoas vindo do Grande Rio em busca de melhor qualidade de vida e fugindo dos preços proibitivos da capital fluminense. Muitas fazendas se tornaram condomínios fechados e também teve um aumento da favelização. Pois bem, nesse contexto, a moçada aqui tem preocupações como a sua formação, já que não há universidade pública na região. Com a galera que estuda nos colégios públicos tivemos no ano passado ocupações em escolas estaduais, pois é notória a situação que se encontra em todo o Estado do Rio de Janeiro. Ao terminarem os estudos os jovens precisam arrumar trabalho no setor de comércio e serviços (bem diferente de criar startups ou trabalhar em um serviço em que tem uma mini quadra de golfe no escritório) com baixos salários ou então (os que podem) precisam ir para o Rio ou Niterói para fazerem seus cursos, ainda que as prefeituras da região disponibilizem transporte. Ou seja, é uma realidade bem diferente de uma galera mimada acostumada ao mando e que precisa de formas "polidas" de comunicação.

Então, justamente por observar o quanto é heterogênea a realidade brasileira em todos as faixas etárias da população, bem como suas diferentes demandas e necessidade que penso que agrupar essas diferenças em uma única letra do alfabeto se mostra equivocado.










segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Millenium II : A menina que brincava com fogo




O segundo livo da trilogia, Millenium II: A menina que brincava com fogo ( Stieg Larsson, Companhia das Letras,608 páginas) dá continuidade aos fatos ocorridos na obra anterior, aprofundando mais sobre a vida da protagonista, Lisbeth Salander, contando com a participação do jornalista da revista que dá título à obra, Mikael Blomkvist, a partir de três assassinatos.

Na trama, dois amigos de Blomkvist, a pesquisadora Mia Bergman e seu marido, o jornalista Dag Svensson são assassinados, assim como o tutor de Lisbeth, o advogado Nils Bjurman. Os dois primeiros estavam colaborando na investigação de uma rede de tráfico de mulheres para uma matéria para a Millenium. E nos três homicídios, Lisbeth é a acusada e passa a trama escondida e Mikael tenta achar os verdadeiros culpados. Enquanto isso a mídia a trata como inimiga número 1 da sociedade e a polícia entra numa caçada a ela.

A história é contada por datas ao invés de capítulos. O narrador em cada dia marcado conta os fatos acontecidos, assim como as lembranças das personagens. O que chama a atenção em muitos casos é que o narrador não é apenas um observador distante dos fatos e onisciente, mas em dados momentos ele coloca, em sua narrativa, as palavras que são pensadas pelas personagens.

Os fatos são escritos em ordem cronológica e a história se passa no começo dos anos 2000, em que podemos perceber a grande presença do aparato tecnológico para não apenas servir de instrumento de comunicação, mas um recurso que Lisbeth usa para descobrir o que deseja, afinal ela é uma hacker. A narrativa é linear, sendo que em alguns pontos o passado aparece de forma narrada pelas personagens ou ainda pelos sonhos da protagonista.

Os acontecimentos se dão inicialmente no Caribe, onde Lisbeth resolve tirar férias e depois regressa a Estocolmo. É interessante que o autor não trata a cidade apenas como um mero cenário, mas descreve os lugares, o nome dos bairros, bem como os lugares ao redor, o que pode ser convidativo a um futuro turista, caso queira conhecer futuramente a capital sueca.

E em meio a esses lugares temos Lisbeth saindo do seu apartamento antigo, deixado aos cuidados de Miriam Wu e compra um novo, maior e em bairro mais nobre. O apartamento antigo, deixado pela mãe, representa justamente o lugar onde ela passou parte de sua vida - quando não estava internada em clínicas - incluindo as lembranças violentas de sua infância. No novo, o apartamento apresenta uma paisagem quase estéril, com poucos móveis com grandes vazios, mostrando um pouco como é a Lisbeth adulta depois de tantos acontecimentos tendo que forjar a sua identidade, sempre escondida (por uma série de motivos) em detrimento do que os médicos, a polícia e a mídia diz a respeito de si.

A narrativa de Larsson é fácil de ser assimilada, com muitos diálogos entre as personagens explicando ao leitor o que está acontecendo. O começo do livro tem um longo enredo, considerado por alguns desnecessário, mas que vai construindo para o leitor a relação que Dag e Mia vai estabelecendo com a Millenium, bem como as suas investigações, assim como o comportamento de Lisbeth, para além do clichê "garota misteriosa doidona que não fala com ninguém". A ação em si vai ocorrer a partir do último terço do livro.

Um ponto fundamental apresentado pelo autor, além da crítica a uma sociedade machista que violenta as mulheres é como certas estruturas contribuem para manter esses sistema, em especial a mídia e as instituições de saúde mental. Larsson pode não ser nenhum Foucault ou mesmo Basaglia, mas não deixa de ter uma visão crítica de como essas instituições criam narrativas sobre as pessoas, rotulando-as em diagnósticos que não correspondem a quem a pessoa realmente é, como pode ser evidenciado neste trecho:

"O diagnóstico que a mídia apresentava sobre Lisbeth Salander variava segundo as edições e os jornais. Ela era descrita ora como psicótica, ora como esquizofrênica com tendências à mania de perseguição (...) Os leitores só podiam concluir que ela era desequilibrada e inclinada à violência".
E a crítica em muitos pontos também vai para pessoas ou instituições que se colocam por vezes como progressistas. Isso ocorre quando se sabe que uma das famílias adotivas de Salander era de sociólogos que queriam adotá-la só para mostrá-la como um troféu no estilo "olha como sou legal, adotei essa menina", o que desperta a revolta de  Lisbeth. Outro trecho que exemplifica bem essa crítica é este:
 "Nem mesmo as reportagens mais compassivas, temperadas com uma pontinha de crítica ao sistema, que exibiam manchetes como "Uma falha da sociedade" ou "Ela nunca recebeu a ajuda de que precisava, conseguiam minorar seu papel de inimigo público número um - uma assassina"

Em alguns pontos sinto que a trama parece com novela da Globo, com "coincidências" para poder desenrolar a trama, como por exemplo no momento em que Salander vai à casa de campo de Bjurman e aparecem os capangas de Niedermann, um dos vilões da história.

Voltando ao ponto do machismo, é interessante observar como Larsson constrói a sua narrativa a partir do olhar dos homens. Melhor explicando, ao invés de ser um autor que busca traduzir a "alma feminina", ele coloca as observações que os homens (bem como instituições) fazem das mulheres e como se comportam com elas. E não só com Salander, mas também com Miriam - onde fica evidenciada a lesbofobia, pela forma como a imprensa e um policial a trata - e na conturbada relação entre Sonja Modig (uma das investigadoras da polícia) com seu colega de trabalho.

Outras duas observações sobre esse "masculino" que cabem ser notadas estão em duas personagens: o médico psiquiatra que atende Lisbeth na clínica onde ela é internada, Peter Telehorian, e o jornalista Per-Ate Sandstorm.

O primeiro é descrito como o pior homem que Lisbeth conheceu, ainda que ele não a tenha estuprado. Ele é um sádico que não se contenta com o silência dela e usa seu "tratamento" como um jogo para satisfação de seu desejo. Uma vez que Lisbeth se recusa a responder às perguntas dos psicólogos, Telehorian a forçava a reconhecer a existência dele. E se for pensada a forma como os homens tratam as mulheres de uma forma geral é isso, é uma objetificação, mas com uma necessidade narcísica do olhar delas para reconhecer o seu suposto poder. Quando isso não acontece, muitas vezes se recorre à violência. Pode se pensar desde o cara que quer forçar uma menina a ficar com ele numa noitada a um marido que mata a sua esposa.

E nessa objetificação, o  estupro cometido por Sandström, além dos aspectos já mencionados, é uma performance a ser vista por seus colegas, para deleite deles. E seu grande medo (assim como de outras personagens) não é baseado no que ele fez com as mulheres, mas do olhar da sociedade julgando-o e acabando com a sua reputação.

Mais uma vez é colocada essa questão do olhar do outro e essa necessidade de afirmação narcísica dos homens. Seja esse olhar de Lisbeth, dos colegas ou mesmo da própria sociedade em si. É esse é um dos pontos em que o masculino se sustenta na obra de Larsson.

E ainda sobre personagens masculinos, Niedermman é colocado como um tipo estranho, esquisito e incapaz de sentir dor por conta de sua genética. E é uma personagem, na descrição de Zala (chefe dele) como assexual. Fico pensando porque a assexualidade é sempre elencada junto com patologias e não como uma variação da sexualidade como tantas outras. Aliás, é legal ver na obra personagens que não são heterossexuais apenas.

No mais a mais é uma obra que prende pela trama, pode trazer grandes reflexões não só apenas sobre nossa sociedade, mas de que maneira nos relacionamos uns com os outros, bem como as instituições presentes nelas.







terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O Estrangeiro

Pensei que poderia ser esse um texto mais formal, pra tentar minha habilidade em fazer uma resenha crítica e tal de um livro que entrou na minha meta de 20 livros de 2017. Na verdade, nunca fui de contar quantos livros leio por ano, mas esse ano resolvi entrar na brincadeira do Good Reads.

Quando o Wagner esteve na minha casa no começo desse ano, vi que ele tinha um exemplar de "O Estrangeiro" de Albert Camus (1913-1960). Fiquei curioso e como não tinha nada pra ler (mentira, tenho uns 3 ou 4 livros pendentes que pretendo lê-los esse semestre ainda) resolvi fazer o mesmo. É pra ele também que dedico esta postagem.

Eu me lembrei dos tempos de faculdade em que uma colega comentava sobre "A Peste", do mesmo autor. Ela estava lendo numa época em que fizemos um trabalho sobre teorias da personalidade e estávamos justamente pesquisando sobre a abordagem fenomenológica-existencial em psicologia. Aliás, pra quem tem curiosidade sobre, só clicar aqui, que tem uma explicação da abordagem.

Enfim, tem muita coisa a ser dita sobre um livro curto. Então vamos a elas.



O enredo não é complexo. A personagem principal, Mersault, um argelino pied-noir (nome cunhado a partir dos anos 60 para franceses e seus descendentes vivendo na Argélia) é acusado de assassinato de um árabe numa praia próxima à Argel. E a trama é dividida em duas partes: a primeira que narra os fatos que começam na morte da mãe de Mersault até o assassinato e a segunda, que mostra a personagem contando os fatos a partir da sua prisão até a espera de um recurso que o absolva da pena. Tudo isso narrado em primeira pessoa.

No começo eu fui acompanhando a história e achei ela comum, o famoso "até aqui nada demais", mas na espera de que algo fosse ocorrer. Foi então, a partir da segunda parte, que pude entender a conexão que existe com a primeira e porque aquele "banal" era imprescindível para a trama.

A questão principal é que, diante do homicídio, Mersault passa a ser julgado pelo seu comportamento diante da morte da mãe e por ter se envolvido sexualmente com Maria e não pela morte do árabe em si. Aliás, sobre "o árabe" há questões que comentarei depois.

Mersault age de forma aparentemente indiferente diante da morte da mãe. Ele vai ao asilo, acompanha os preparativos, como se fosse um dia como um outro qualquer e não demonstra tristeza. Depois, ele se envolve com Maria, recusa uma transferência da firma que ele trabalha para França e se envolve na situação de seu vizinho Raimundo, que espanca a sua amante árabe e cujos irmãos querem vingança. É com um deles que Mersault se envolve em uma briga, matando-o.

As ações vão acontecendo sem que o personagem tenha uma intenção. O crime, por exemplo, ocorre em um momento em que o protagonista está sob efeito do sol escaldante na praia, mas não há um desejo de vingar o amigo perseguido pelos árabes. Aliás é interessante que no livro Raimundo fala a respeito da camaradagem masculina e Mersault se mostra indiferente à amizade dele. O mesmo ocorre com Maria, que pergunta sobre casamento e pra Mersault "tanto faz". A ligação dele com ela é evidenciada mais pelo desejo sexual do que afetivo.

Aliás a forma como Mersault lida com a vida aparecem em três pontos que me chamam muito a atenção: no enterro da mãe, na proposta do patrão e na cena final com o capelão. Ao comentar sobre os dias de trabalho após o enterro ele diz:

"Pensei que passara mais um domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim das contas, continuava tudo na mesma "


 Essa forma de ver as coisas, de que tudo permanece na mesma é um ponto chave para perceber o comportamento dele. Três pessoas pedem que ele mude. Elas são o chefe, que pede que ele tenha ambição ao propor que ele se mude para França, o juiz, que antes do julgamento, peça que ele se arrependa do que fez empunhando um crucifixo- ironia para a França berço da Revolução que separou Igreja e Estado e que, apesar de ser nos anos 40, é uma discussão atual - e o capelão, que pede a conversão dele ao teísmo no momento em que ele espera o recurso sobre a pena capital.

Vejo nessas três figuras, bem como o promotor, o advogado, o porteiro do asilo a representação de uma ordem que procura dar um sentido para a existência, quando na verdade ela não tem. O comportamento deles ajuda perceber um pensamento do protagonista, diante do seu julgamento "as qualidades de um homem vulgar podiam erguer-se esmagadoramente contra um culpado".

A forma como ele descreve o julgamento mostra o grande abusurdo. Primeiro em que em nenhum momento é levado em consideração o homicídio, mas o caráter de Mersault: o fato de colocar a mãe no asilo, não demonstrar tristeza no enterro, arrumar uma namorada (que para ele é Maria e pr'os que julgam, amante) logo após a morte da mãe e se envolver com uma pessoa de "vida torta" (vou usar esse termo do meu pai) como Raimundo. Para quem julga, tudo isso foi premeditado, tem uma intenção, algo intrínseco ao caráter de Mersault. Para quem sabe da primeira parte do livro sabemos justamente que ele não faz nada de forma premeditada e nem tem uma "essência" de indiferença. Aliás o mote do existencialismo aparece aí "a existência precede a essência". Tanto é que ele afirma:
"Mesmo do lugar dos réus, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos (...) Tudo se passava sem a minha intervenção. "

 Encaro isso justamente como uma boa metáfora da nossa existência. Estamos sempre sob o olhar dos outros que colocam observações sobre nós mesmos. Mersault compara os olhares dos jurados a dos passageiros em um transporte coletivo quando entra alguém que não estava nele antes e é medido pelos olhares. Mais ou menos a sensação que tenho ao entrar no metrô, por exemplo. E existem mecanismos que usamos para repreender a nossa auto expressão. Percebo isso na figura do advogado que constantemente recomenda a Mersault que ele não fale nada durante o julgamento. Quantos advogados como esse não encontramos nas nossas vidas, sejam outras pessoas, sejamos nós mesmos?

Um observação que faço é sobre Celeste, que apesar de atrapalhado, o dono do bar frequentado por Mersault tenta defendê-lo o tempo todo. Interessante observar que o bar pode ser visto como um lugar de contraponto à ordem, especialmente nos anos 40, pois é um lugar de diversão, bebida, mulheres, diferente do que é apregoado pelo patrão, juiz e pelo capelão.

A questão da camaradagem masculina, apontada por Raimundo, também entra em xeque se percebemos que os principais atores que contribuem parao destino de Mersault são homens. Penso: por que nós, homens, só somos camaradas se agimos com aqueles do nosso bando que fazem exatamente as coisas que queremos, uma espécie de projeção narcísica e, quem não é do jeito que desejamos, é condenado.

Em relação ao árabe fica o meu grande incômodo com a obra. Ele não tem nome, não tem descrição física, nada disso. É só um árabe irmão da amante de Raimundo e que anda com outros árabes a seguí-los e vingar o espancamento da irmã pelo amante (aliás, Mersault foi testemunha favorável a Raimundo na delagacia). Pode-se dizer  "ah, anos 40, natural esse preconceito". Mas nenhum preconceito é natural.

A maioria dos prisioneiros são árabes (estamos falando de uma Argélia sobre domínio francês, logo os que detém poder sobre o ordenamento jurídico) e a vítima do homicídio não é em nenhum momento mencionada no julgamento. Isso é um ponto bem interessante também.

Mersault tem um outro vizinho, o velho Salamano, que vive com um cachorro que também está velho e que vive sendo agredido pelo dono. Em dado momento ele foge de casa e o velho o chama de "O Rei da Fuga". Deve ser uma referência à Houdini e, no século seguinte, será nome de um filme (já comentado neste blog) de Antoine Giraudie que fala justamente de um homem cansado de sua vida e que resolve fugir com uma adolescente.

A mãe de Mersault antes de morrer se envolve com Perez no asilo. Ele ao testemunhar afirma, diante da pergunta do promotor, que não viu Mersault chorar. O advogado, sagaz, pergunta se Perez viu Mersault não chorar e ele se confunde e ouvem-se risadas. Daí vem a tirada sensacional do advogado:

"Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade"
Será que a vida não é desse jeito, Muito do que fazemos corresponde sim a algo factual e verdadeiro. Mas o julgamento que fazemos das pessoas a partir do que é feito, será que ele corresponde ao que é verdade?

Ainda sobre o asilo há o porteiro, que é um velho que se não fosse o trabalho ali seria um indigente. E Mersault aponta que ele fala dos outros idosos como se ele não o fosse. O próprio protagonista, momentos depois, se corrige ao falar dos outros prisioneiros, quando ele é apontado como diferente dos demais (afinal é um pied noire entre árabes) e ele faz questão de dizer que é como os outros.

Para Mersault não importa a morte dos outros, o amor da mãe, Deus, "os destinos que se elegem" (Paris, rendenção divina) já que o destino de todos nós é a morte. Somos como o porteiro do asilo, tentando se diferenciar enquanto a morte nos iguala.

A relação de Mersault com a vida e com a morte deixa entendermos como foram as suas ações. Ele no corredor da morte e a mãe no asilo (e podemos pensar também no velho cachorro de Salamano) se sentem libertados. A consciência do fim dos dias mostra a indiferença do mundo e então ele afirma que ninguém poderia chorar sobre o caixão de sua mãe, já que ela conseguiu sua libertação.

E daí se alguém observa a obra como algo angustiado, niilista, creio que ele se trata de uma celebração da vida (aliás, Camus diz que diante do absurdo da vida não cabe o suicídio, mas revolta). Isso fica muito claro pra mim nessa afirmação:
"Compreendi então que um homem que tivesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se maçar. De certo modo, isso era uma vantagem"

Mais que buscarmos uma rendenção divina ou aceitar papéis pré estabelecidos pelos outros poderíamos prestar a atenção em nossas experiências. Nesse sentido, Mersault poderia dialogar perfeitamente com Alberto Caiero, um dos heteronômios de Fernando Pessoa. E por celebrar a vida desta maneira, paradoxalmente com fraternidade à indiferença do mundo, ele prefere que em sua condenação todos os odeiem que a compaixão.

Enfim, "O Estrangeiro" é um daqueles livros que realmente causam impacto e que permite que eu faça uma postagem gigante como essa, sabendo que tem muito mais coisas que ainda podem ser ditas sobre essa obra. Estou feliz nesse sentido por retomar a leitura e escrever por aqui.








segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O pensado e o dito

Hoje terminei de ler "O Estrangeiro" do Camus. Essa semana ainda vai ter textão aqui falando sobre as minhas impressões a respeito do livro. Por enquanto, vou colocar aqui algumas impressões que tive após terminar a leitura em relação a um certo aspecto meu.

Foi assim, peguei um caderno e daí comecei a fazer uma análise formal do livro, pensando em perguntas chave como enredo, tempo, personagens etc e tal. Daí, passado isso resolvi fazer uma lista das minhas oobservações, uma espécie de rascunho para um futuro texto. E foi surpreendente.

A surpresa se deve ao fato de, após terminar a leitura, achar que minhas observações seriam poucas e superficiais. Daí comecei a fazer a lista e lá desatei eu a escrever um monte de coisas. E também no momento da escrita, apareceram pontos que até então eu não tinha pensado.

Por vezes tenho aquela sensação de estar pensando em um monte de coisas e que por vezes no papel parecem poucas. Ou após um evento aquela sensação, depois de fazer uma determinada análise, de "eu deveria ter dito aquilo assim assim e assim".

Por isso, ao contrário do behaviorismo mais radical, não vejo o pensamento como uma "fala muda". Existem muitos filtros entre aquilo que está em nossas cabeças ou que saem em nossas bocas ou escritas ou digitadas. Filtros esses que podem amplificar certas coisas (vejamos, no pior dos casos, as caixas de comentários dos portais de notícias) ou mesmo reduzí-las.

O importante para eu entender aqui é que isso faz parte da maneira que temos de nos expressarmos. E é bom entender que filtros são esses, pois, no fundo, ajudam muito no processo de auto-descoberta.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Ten Meter Tower

O Wagner esse fim de semana resolveu me passar esse curta-metragem, que mostra a reação de pessoas antes de pularem (ou não) de um trampolim de 10 metros de altura. Aliás, clicando aqui tem-se mais informações sobre um dos autores desse vídeo realizado na Suécia.




Não vou entrar em detalhes em relação a esse experimento em si, mas na questão do quanto ele me traz lembranças de infância e ao mesmo tempo de como a minha auto-confiançã e a confiança nos outros estão ligadas.

Quando tinha 8 anos fazia natação no Hotel Glória- hoje dilacerado pós Eike Batista- e me lembro de que lá havia dois trampolins. Um baixo e outro mais alto que tinha cerca de cinco metros de altura.

Eu morria de medo de nadar na piscina funda, ainda que por algumas vezes eu tenha conseguido fazer isso de forma afobada e nunca me afoguei. Mas sempre senti medo. E o terror aumentava quando o professor mandava pular do trampolim mais baixo.

Sou capaz de lembrar da sensação até hoje. Os azulejos da piscina com aquele azul forte que fazia ainda parecer mais profunda. E o meu desespero em que a água me trouxesse rapidamente à tona e pudesse nadar até a lateral da piscina, onde havia uma escadinha para sair dela. E nas vezes que isso aconteceu, sobrevivi, mas era um terror. E outras crianças, mais experientes, achavam graça.

Mas daí me lembro de algumas outras que tremiam de medo quando tinham que pular do trampolim mais alto. E eu estranhava, porque pra mim, se elas sabiam nadar, não haveria motivos para temer. Daí descobri que com oito anos eu não tinha medo de altura, mas da água.

Anos mais tarde, um dos exercícios que fiz numa matéria da faculdade que tinha ligação com teatro era jogar o corpo e deixar com o que o outro segurasse. Daí lembrei do medo que tinha de ninguém me segurar e não me lembro se fiz esse exercícios direito.

A situação da piscina tinha a ver com auto confiança, afinal só a água tinha que me trazer de volta à tona. Situação diferente do exercício em sala, que dependia da ajuda da outra pessoa. E não lembro como reagi ou o que fiz neste exercício.

Sei também que nessa época eu evitava beber demais por justamente pensar: se eu ficar bêbado, com essa altura e peso meus, não há quem me carregue depois.

E daí voltando ao vídeo fico pensando exatamente nisso. Sobre como vencer os próprios medos, sendo que no caso do trampolim existe a pressão dos outros para que se pule. Isso em mim causaria ainda mais ansiedade. Tal como senti vendo as pessoas hesitando. Parecia até que era eu ali e daí me vieram todas essas lembranças.

Ah sim, uma das coisas boas do ano passado foi que, finalmente, perdi meu medo de nadar na parte funda da piscina. Primeiro fui perdendo esse medo na praia, onde a água é mais salgada e densa, o que facilita a flutuabilidade. Só falta ainda eu pular do deck da Praia do Forno. Vamos ver se consigo ainda em 2017.

Sobre a imaginação

Um exercício que me foi proposto uma vez foi fazer um texto com todas as coisas que estivessem na minha cabeça. Sem censura, numa espécie de fluxo. O objetivo era explicar mais ou menos o que a psicanálise queria dizer com a associação livre. Adorei fazer este exercício.

Estes dias, pensando muito em questões existenciais me deparei com a minha própria capacidade de imaginar coisas. Um exercício pessoal que faço desde sempre é fechar os olhos quando ouço uma música. Ela me transporta para lugares e situações como se fossem um sonho, sem que eu tenha um controle sobre o que está acontecendo em cena. E fazia muito tempo que eu não fazia isso e achei que tivesse perdido essa capacidade. Ledo engano.

Uma das coisas boas em que senti efeito imediato foi a redução da minha ansiedade e uma noite de sono tranquila. Ainda mais considerando que em uma dessas vezes eu estava dormindo fora da minha casa e eu costumo dormir pouco fora dela. Durmo tarde e acordo muito cedo, porque me causa estranheza.

Talvez esse escape trazido pela imaginação, por mais que as imagens sejam, em tese, sem controle, me fazem estar comigo mesmo sem a interferência externa. Ou ao menos ela é atenuada. E de fato, estar com partes de mim, ainda que aparentemente desconhecidas, é estar em casa. Faz sentido.

Termino esse texto com essa música da Rita Lee e lembrando da dra Nise da Silveira, que viu a associação livre e a imaginação de seus pacientes não como um sinal de que era algo apenas patológico, mas algo com uma força criativa, artística, muito grande.