quarta-feira, 31 de maio de 2017

A ditadura do afeminado

Ultimamente tenho acompanhado textos e discussões, tanto aqui como em outros países, sobre o preconceito que cerca os gays ditos afeminados. Ela se dá de várias formas, mas quando se discute a questão do "não sou/não curto afeminados" aparecem estes discursos: é só uma questão de preferência por um lado e, por outro, a questão do quanto esses gostos estão carregados de preconceito, uma vez que nossos gostos são influenciados pela heteronormatividade. Em uma sociedade machista que rejeita o feminino é fato que não é apenas uma "questão de gosto".

Essa semana, em uma discussão que li, uma pessoa postou um print de uma conversa no whatsapp. Era o print de dois rapazes que, pelo jeito, se conheciam há pouco tempo. O rapaz A dizia ao rapaz B que ele era legal, que tiveram um bom encontro, mas que infelizmente, B era afeminado e isso dificultaria, por exemplo, apresentá-lo aos pais. O rapaz B se ofendeu e, na tentativa de A em se refazer e dizer "podemos ser amigos", B disse-lhe que não poderia ser amigo de uma pessoa homofóbica.

Logo em seguida li um comentário que me chamou a atenção. Dizia que os gostos das pessoas não têm sido respeitados e que quem não gosta de afeminados cai na "malha fina" e recebe o rótulo de pessoa preconceituosa. Não ficou muito claro pra mim, mas também a pessoa dizia sobre aqueles que em um primeiro momento fingia não ser afeminada e que depois se revelava e daí achava ruim pelo fato da pessoa não curtir. Nesse sentido o comentário dizia que é importante ser quem somos e deixar as pessoas gostarem ou não da gente, pois ninguém se relaciona com quem não gosta. E que essa mudança de comportamento é algo incômodo.

Penso que independentemente de se pensar as preferências como construção ou não, os gostos devem sim ser respeitados. É muito ruim alguém querer forçar uma pessoa a qualquer coisa que ela não gosta. E sendo específico no caso, se o cara não curte afeminado, que cada um tome seu rumo. O cara que não curte tem seu gosto respeitado e a pessoa afeminada em questão também não é obrigada a ficar com alguém que tem essa visão heteronormativa.

Um ponto interessante que esse comentário trouxe foi o lado de deixar as pessoas gostarem ou não da gente. Recentemente li um texto (infelizmente não tenho o link dele) em que um gay de origem asiática nos EUA dizia que era o momento das pessoas não brancas pararem de reclamar dos brancos que a rejeitam e se relacionarem com quem gostam delas. Acho isso importante, por questão de amor próprio, ao mesmo tempo em que não gosto da ideia do "deixar de lado" quando o assunto é discriminação e preconceito, pois parece que está varrendo a sujeira pra debaixo do tapete. Penso que é importante sim, o valor a si próprio e não suplicar atenção para quem tem determinado privilégio social, mas também bem como apontar o racismo. Nenhuma mudança é possível se tudo fica dentro da mesma bolha.

Outra questão é de também não nos submetermos a uma "persona" que não somos só pra se ajusta ao queé aceito socialmente. Obviamente, não cabe uma mera crítica, pois muitas vezes fazemos o uso dessa imagem aparentemente irreal como uma forma de defesa. Nesse sentido, na medida em que a pessoa toma consciência de quem ela é e se fortalece, sendo essa uma ação difícil e não apenas algo individual, essa persona se torna desnecessária.

O que não faz sentido é a questão da "malha fina". Ou que os afeminados estão impondo uma "ditadura". Ela seria possível sim, se estivéssemos em uma sociedade em que o gay afeminado fosse o mais desejado e o menos vulnerável a sofrer violências de todo tipo. Acontece que a realidade é muito diferente. Por isso é um equívoco, em uma sociedade em que o afeminado está sujeito a sujeito a uma série de violências, baseadas em uma sociedade que coloca o que é tido como feminino em condição de subalternidade. Esse discurso (estão querendo impor que se gostem dos afeminados, o gay másculo está sendo desvalorizado) , que sempre é recorrente nestas questões se assemelha aos de "racismo reverso", "heterofobia" e "misandria".

Em relação à "modinha", cabem outras observações. Por um lado há sim pessoas que estão revendo seus preconceitos em relação a essas questões. Eu mesmo, no decorrer da minha vida tive que rever e mudar meu pensamento em relação a isso. Já fui muito preconceituoso, até porque ninguém nasce "desconstruidão". Nesse sentido apontar que a pessoa faz por modinha não faz sentido. Por outro lado, existem sim pessoas que fazem um discurso anti heteronormativo, mas isso se dá só na teoria, pois na prática se revela igualmente preconceituosa.

Sendo assim, o importante é podermos nos fortalecer e para isso observar bem o mundo que nos cerca a fim de que nos fortaleçamos e também possamos rever nossos preconceitos e ter consciência dos nossos privilégios, quando existirem. Perceber que existem assimetrias nas relações e que o processo de rever essas coisas não deve ser uma "moda" para parecer desconstruído, palavra tão em evidência. Dessa forma pode-se ter um diálogo real e verdadeiro e, de fato, conviermos com a diversidade que tanto falamos.

domingo, 28 de maio de 2017

Internação Compulsória

Vi esse texto no feed do meu Facebook e quem compartilhou me disse que ele merecia ser lido. Li e reli várias vezes, até porque e me chamou a atenção por ser algo relacionado à saúde mental, tema do meu interesse.



Daí resolvi fazer esse texto.


A autora traz a experiência em um atendimento a uma pessoa envolvida com drogadição e como a pessoa tinha vários problemas, incluindo exploração sexual, AIDS , tuberculose e sífilis.A partir dessa experiência ela faz a defesa da internação compulsória, por pensar que é uma forma de salvar vidas para quem está em uma situação grave e, por isso entende como um ato de caridade. Quem é contra a internação, segundo o texto, são pessoas más e que buscam ganhos políticos que tem apoio de uma claque imbecil de esquerda.

É fundamental ouvir tanto as pessoas que passam por essa situação como as pessoas que trabalham com elas para que entendamos a situação não como caso de polícia, mas que tem a ver com saúde pública. Adriana nesse sentido traz a questão para esse campo a partir da sua experiência e pauta a questão no campo da saúde mental e não no policial.

Quem está em uma situação grave como a vivida na cracolândia, de fato, não é algo como "protesto". Existem inúmeras variáveis e uma questão como uso abusivo e dependência química devem ser vistsa por um ângulo mais abrangente, que leve em consideração também  questões sociais e econômicas, dada a situação de vulnerabilidade.

Ela aponta que existem pessoas que defendem a existência da cracolândia. Entre os críticos da internação compulsória não vi quem defendesse essa existência, mas se a autora o viu cabe realmente a crítica. Nenhuma pessoa sã pode dizer que a cracolândia é um lugar legal.

Vejo falhas no texto ao defender a pura internação compulsória sem um viés crítico a ela. Especialmente  vindo de quem atende pacientes com esses problemas. Há pesquisas tanto no Brasil (você pode ler esses texto aqui e aqui,como exemplos)  como eu em outros países que mostram que essa questão é muito controversa, pois não há resultados que afirmem que a internação compulsória é eficaz.  Aliás é bom lembras que existe em alguns países a ideia de internação "semi-compulsória" como substituição a uma pena em casos de crimes de delitos não graves com relação a dependência. Políticas Públicas devem sempre observar esses dados e não apenas relatos de casos pontuais, ainda que eles também tenham sua importância.

Outro erro e apontar que as pessoas que são contrárias à internação o fazem por não conhecer a cracolândia ou por não ter um familiar nessa situação. Essa afirmação é tão falaciosa quanto se eu aqui apontasse que todas as pessoas a favor da internação compulsória são malvadas que querem apenas tirar as pessoas de circulação prendendo-as.

Existindo a internação compulsória não podem ser negligenciadas as questões éticas envolvidas, especialmente no que diz respeito ao poder de decisão das pessoas, entendo que existem casos extremos que esse poder não existe. De qualquer forma para haver o tratamento, que não é apenas a internação em si, mas envolve mais coisas que não são pontuais, é necessário o envolvimento e a participação dos pacientes.

Outras implicações tanto do ponto de vista da saúde e o Direito, através de leis entende isso é a participação e envolvimento das redes que cercas as pessoas com esses problemas. Nesse sentudo cabe ao Estado oferecer condições para isso. No entanto não há esse aprofundamento no texto da autora, que prefere trazer uma visão sociológica do século XIX na qual se pensa uma sociedade em ordem e com pessoas desajustadas a essa ordem, pessoas que são chamadas de farrapos humanos que abrem mão de suas vidas sem fazer uma  crítica necessária sobre de que maneira o nosso modelo de sociedade cria as cracolândias.

Eu gostaria muito que ela, como profissional, relatasse além dos casos, quais as condições de trabalho e do tratamento oferecidos pelos agentes públicos, a forma como as famílias são envolvidas e em que sentido ela e seus colegas tem se mobilizado e cobrado dos governos para que a situação melhore.
Sendo assim, não cabe apenas afirmar que as pessoas contra a internação compulsória fazem uma claque de esquerda demagógica.

O que há é o questionamento necessário de como essa política tem falhas. E por se tratar de política pública de saúde isso deve ser levado em consideração. A pura retirada das pessoas das ruas e jogadas em clínicas. Muitas dessas clínicas, aliás, estão envolvidas no fundamentalismo cristão, que tem ganhado força no Brasil e o que se tem é o favorecimento desses setores ao invés de um tratamento devido Não é a toa que membros da chamada bancada religiosa tem interesse nessa forma de internação.

A partir do momento em que possa se fazer uma discussão mais ampla, a partir de descobertas que os pesquisadores de diversas áreas tem feito e trazido para o tratamento das pessoas envolvidas na dependência do crack (entre outras drogas) pode-se formular políticas que garantam que tanto o paciente tenha bons resultados e que pessoas como a Adriana possam realizar de forma plena e segura o seu trabalho.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

O sexo que é?

Li que esta semana a Ru Paul recebeu uma série de comentários agressivos e até mesmo ameaças por ter desclassificado uma participante do seu reality show. Li um texto que associa a violência cometida por parte do público gay à heteronormatividade. Vale a pena lê-lo aqui.

Eu não descarto a ideia do texto, mas penso que, sendo a própria heteronormatividade como uma das características de uma sociedade machista, gosto de ir além dessa ideia e pensar na própria construção das masculinidades hegemônicas tendo como um de seus alicerces a violência. Por isso sempre é importante refletir sobre os papéis de gênero.

Nos estudos de masculinidades e violência são recorrentes o uso de dados que associam o alto número de mortes violentas com o comportamento masculino. Homens jovens em especial lideram várias estatísticas de homicídios e outras formas de morte violenta.

Diversas áreas do conhecimento têm contribuído para essa reflexão, especialmente no que diz respeito aos aspectos da própria sociedade sobre o papel esperado para o comportamento masculino. Ser "homem de verdade" muitas vezes significa correr riscos e usar a violência como forma de resolução de conflitos. Nesse sentido a psicologia e a psicanálise também têm as suas contribuições.

Recentemente tenho procurado textos da psicanalista feminista Nancy Chodrow. Pelo que observei ela questiona a premissa tradicional freudiana- de base biológica, trazida pra psicanálise- e lacaniana - que relê Freud tendo como uma de suas bases a antropologia de Levi Strauss- a respeito da diferenciação entre meninos e meninas. Aliás estamos em tempos de maior questionamento a respeito do binarismo sexual, mas para aprofundar sobre isso seria necessário outro texto. Vou me ater a questão proposta por ela.

Nos Três Ensaios, Freud diz que a diferença sexual que as crianças fazem a partir do momento em que meninos e meninas pensam ser possuidores do pênis, até o momento em que o menino percebe que ele tem a menina não (complexo de castração) e a menina percebe que ela não tem o pênis (inveja do pênis). Lacan retoma isso no campo da linguagem e do simbólico em que a mulher é o "sexo que não é", ou, como dizia o meu ex professor Clauze, uma lógica do sistema de numeração binária 0 e 1. Ok, vai ter uma ruma de lacanianos dizendo que não é assim, que Mulher é um conceito, que não é a mulher real (ou da realidade) etc e tal, mas é fato que há críticas a sua obra nesse aspecto.

Chodorow coloca a noção de que ser homem não é uma afirmação fálica, mas sim uma negação do feminino. Ao invés de uma afirmação, o masculino se dá através de uma negação. Até relacionei nesse sentido com o ritual de passagem descrito na tribo Anga da Nova Guiné em que os rapazes, para fazer a transição para a vida adulta, devem engolir o semen de jovens mais velhos como forma de expulsar o efeito do leite materno ingerido quando criança.

Em nosso mundo ocidental, ser homem muitas vezes é negar tudo aquilo que é postulado como feminino. A aproximação com o feminino é motivo de piada, desonra e mesmo violência. E está na base das diversas formas da LGBTfobia. E de que maneira essa violência usada na construção do masculino atinge homens cis não heterossexuais, sendo nós também alvos dessa violência machista?

A nossa orientação sexual, por mais que existam várias discussões sobre se nascemos com ela ou se a aprendemos, é modulada ao longo dos anos. E os meninos ao longo do seu desenvolvimento vão aprendendo que a violência, independentemente de sua orientação, é a maneira como são resolvidos os problemas, que é a forma da afirmação de sua identidade, do seu ego.

É nesse sentido que um hetero torcedor de um time e um gay com sua diva musical favorita se aproximam. As escolhas que fazemos, sobre o que e quem amamos passa por um investimento narcisista e, diante da ameaça por parte de outra pessoa, de outro time ou preferência, a resposta, pra tentar manter esse ego masculino inteiro (tarefa inglória) se dá justamente pela violência.

Claro que aqui é bom observar que há discrepância grande entre os privilégios dos homens cis heterossexuais dos que não são, o que nos coloca em situação de maior vulnerabilidade. Ainda assim, esses aspectos da nossa socialização e a forma como isso está presente em nosso desenvolvimento psíquico não podem ser descartados.

Nesse sentido é importante percebermos esses aspectos das masculinidades hegemônicas e de que maneira ela nos afeta, de forma negativa, o nosso comportamento, bem como nossos sentimentos e a nossa possibilidade de expressão emocional (como o texto que eu mencionei já coloca). Que esse comportamento paradoxal que elege uma diva, mas estimula rivalidade, agressão e tudo mais não contribuem de forma positiva tanto na nossa realidade externa como em nossa subjetividade.

E também cabe o pensamento: ao invés de nós, homens cis, perguntarmos apenas "O que querem as mulheres", pois na maior parte das vezes a pergunta vem como forma de colocá-las como seres "complicados" é pensarmos "quem realmente somos e o que queremos ser" e perceber que as complicações, na verdade, são para todos nós e não tá baseada em nossa identidade de gênero.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

O alienígena que habita em mim

Esses dias me deparei com duas situações de amigos que me fizeram pensar sobre procastinações e conflitos. Na primeira, um amigo me dizia das investidas que recebia de um cara, mesmo ele estando em relacionamento monogâmico com seu namorado. Na segunda, a pessoa me dizia que estava pra baixo e que se encontra em conflito entre a sua bissexualidade e o fato de querer uma família nos moldes tradicionais.

Não dei palpite, mas pensei: por que essas pessoas não liquidam logo de uma vez? Por que essa necessidade de deixar pra resolver depois, ou de manter esses conflitos ao invés de resolverem logo isso de uma vez. Daí vem a voz do meu pai na minha cabeça com o velho ditado: você já olhou para o próprio rabo?

Pois então, olhei. Pensei na ruma de textos que queria colocar aqui. Nas caminhadas que eu queria fazer. No eu rumo profissional. Nas condições para ir a um encontro em uma cidade próxima. De reduzir a quantidade de comida. De ler mais. Escrever mais.

Existe uma parte de nós que é nossa, mas a enxergamos como algo de Outro. O meu exemplo mais simples está num sonho de uma invasão alienígena - logo, algo externo- e eu muito puto, vou falar com o chefe da invasão que me diz que quem comandou aquilo fui eu mesmo. Obviamente, aquele foi o ponto chave para eu acordar.

Crio então esses ritos: para caminhar, preciso de um dia tal, de uma playlist tão. Olha o trabalho! Pra o rumo profissional tenho medo de encarar as minhas próprias potencialidades por não querer encarar de frente certas coisas. No encontro, eu já tinha visto os horários dos ônibus e se não soubesse, tem como ficar sabendo. Em relação a escrever, ler e reduzir a comida, só começar. Só começar?

O fundamental nesse sentido é admitir que existe essa parte alienada. O alienígena que comanda essa invasão que parece alheia, mas é minha mesmo. Tal como existe o jogo erótico entre aquelas duas pessoas mesmo uma estando em relacionamento monogâmico ou como o aquele que deseja a sua liberdade pra ser quem é, viver de forma plena sua sexualidade mas ainda se prende a certos moldes que parecem mais aceitáveis socialmente.

Aliás, digo que as conversas que aconteceram esses dias com esses dois amigos, mais que me dar um estalo para pensar sobre esses moldes que criamos e nos prendemos, serviu para pensar "oi, o que eu também faço comigo mesmo nesse sentido?"

Até chegar o momento de admitir que há uma escolha sim que pode me fazer mais feliz, ainda que ela implique na quebra de um estado outro que mantém um certo comodismo, que me faz apontar para o chefe da invasão e querer satisfação. Admitir que o enredo, sou eu mesmo que crio. E que sim, ele é possível de contradições, dificuldades e não é algo pronto e linear. E não há nada de errado nisso.