segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Vez de Morrer

Já fazia mais de um ano que eu tinha comprado esse livro, mas ainda estava sofrendo com as minhas procastinações básicas. E levei quase um mês para finalmente escrever esse texto, que é uma análise pessoal e, sendo assim, tá longe de ser aquelas resenhas críticas formais com as impressões que tive do texto de Simone Campos.

Basicamente temos Izabel como protagonista, que após a morte do avô sai do Canadá e volta para o Rio de Janeiro, indo se estabelecer na localidade de Araras no município de Petrópolis, região serrana fluminense, na casa onde morava o seu avô. E é basicamente nesse cenário que se dará a maior parte da ação, sejam os envolvimentos sexuais/afetivos de Izabel, sua busca por trabalho e os confrontos.

Primeiramente me chama a atenção em como Simone coloca Araras. Fazendo uma ótima ironia com a classe média carioca, ela dá um histórico das transformações do lugar nos últimos tempos. Mas é bom esquecer o clichê do "local pequeno isolado e com pessoas pequenas interioranas", uma vez que múltiplas realidades se inserem naquele lugar. É o ponto que me chama para as diversas alteridades que há ali. E se estamos em uma época em que as formas de comunicação andam mais velozes bem como o encontro dessas alteridades, isso não é deixado de lado e para isso, não foi necessário colocar personagens "online" 24 horas por dia. Tentarei refletir melhor sobre essas alteridades.

Em uma época em que vejo discussões sobre "recorte de classe x identidades", uma dicotomia que considero artificial e que não dá conta da multiplicidade e da forma como uma questão atravessa a outra eu vejo essas diversidades. Por um lado há Izabel, mulher, independente, que vivencia sua bissexualidade sem grandes conflitos internos por conta disso, branca, de classe média. O fato dela ser mulher bissexual e as dificuldades que surgem por conta disso não são desprezadas, muito pelo contrário. Mas o seu encontro com Eduardo, aquele com "cara de índio", de outra classe social é atravessado por essa diferença. Percebo isso no momento em que ela chega na loja dele e espera ser servida- em um país como o nosso as classes média e alta esperam sempre ser servidas- bem como a forma que ela pensa sobre os nomes das pessoas naquele contexto:

"naquelas partes, havia muitos nomes como Geísa e Joelmo e Klay, mas o homem se chamava Eduardo. Izabel sentiu uma compulsão de ir atrás da mãe do rapaz e congratular o bom gosto"

O que me faz pensar na teoria das representações sociais, em que uma das ideias é "tornar o estranho familiar". Se Eduardo é o "outro", seu nome e as suas características intelectuais e o fato dele não comungar da mesma religião de seus familiares, faz com aquele rapaz, a princípio de outra classe, se aproxime das referências de Izabel. Há algo de narcísico na nossa atração.

Pessoalmente, ainda pensando nessa questão de classe, há algo que me chamou a atenção Tem um momento em que a procura de Izabel por um apartamento na zona sul carioca e ela procura estabelecer boas relações com o porteiro.
"Saiba conquistar um porteiro e um corretor ficará sem comissão. - Boa tarde!- Boa tarde, - Meu nome é Izabel"
Ali naquele momento tem-se o olhar da Izabel e eu, na minha leitura automaticamente fiz o olhar reverso, uma vez que meu pai foi porteiro por 50 anos, também na zona sul carioca e lembrei das inúmeras vezes em que aparecia gente pra vender os apartamentos e pedia a ele pra indicar um comprador na base do "depois te dou uma comissão" e depois sumia. Situação que só mudou após o casamento com minha mãe, que não deixava meu pai vacilar desse jeito.

Aliás, falando de religião, ao ver as personagens evangélicas, é bom esquecer o esteriótipo - especialmente no caso das mulheres- da beata de saião gritando aleluia o tempo todo. Com conhecimento de causa, Simone mostra as personagens evangélicas sem esses clichês, sem deixar de lado as noções morais que norteiam esse grupo que, ao mesmo tempo se insere no contexto capitalista da teologia da prosperidade. Isso pra mim é bem evidente nos planos da irmã de Eduardo.

Na questão da alteridade, me chama a atenção uma passagem em que na busca de uma terapia quando era mais jovem, Izabel se vê diante da negligência da terapeuta.  Justamente o material principal de qualquer abordagem (a escuta) é deixado de lado e essa ausência reflete, até certo ponto, o modo como a personagem lida com suas emoções.

Em toda a leitura não posso deixar de lado a forma bem feita como são construídas as personagens masculinas de diversas classes. Ao começar por Eduardo, personagem que tomei antipatia desde o começo por achá-lo um completo babaca que faz as coisas só pra manter o seu lugar de "macho" diante das cobranças ao redor dele. Se Izabel é cobradas em ter uma carreira, um emprego estável, seja por sua mãe ou a vizinha Aída, ela ocorre com Eduardo no sentido dele ser um homem solteiro e adulto. A forma como ele se relaciona com Sirlene e com os amigos é bem típica com o marcador atual da irresponsabilidade: homem não tem responsabilidade é assim mesmo. Sem falar nesse marcador da masculinidade da necessidade a aprovação de outros homens, como na transa com Haline:

"Uma loirinha chamada Haline colocou à prova os rumores (de homossexualidade) sentando em seu pau no banco de trás. Ele estava tão bêbado que não pôs camisinha (...) Gozou, abriu os olhos e viu Otoniel e Adão do lado de fora aplaudindo".
Essa passagem me lembra muito algo da indústria pornográfica em que, se o ator não goza, ele não recebe o cachê e precisa chamar outro pra completar a cena.

Outro bom exemplo desse machismo está presente com o ator namorado de sua amiga, cuja maior preocupação é não parecer corno. Mesmo vivendo em um meio diferente do de Eduardo- daí a importância do recorte de gênero além do de classe- ele tem essa preocupação do olhar de outras pessoas que podem tirá-lo desse lugar do masculino. Outro personagem detestável, porém verossímil.

Em meio a tudo isso gosto de perceber a presença marcante de uma cor na obra: o branco.

"A qualquer momento surgiria a construção branca que substituíra a antiga rodoviária"
"...logo Izabel avistou a fila de táxis também brancos que cobravam por destino e não distância"
"Só quando entrou na rodoviária se deu conta da espessura da neblina. Lufadas brancas invadiam o interior do terminal. O frio também. O frio era branco"
"Dois faróis branquíssimos perfuraram a distância e encontraram as retinas de Izabel"
"Agora eles eram brancos e tinham na lateral o brasão cinza-claro da cidade"

Se o branco em princípio se relaciona com a luz e clareza das coisas, aqui ele ganha um ar paradoxal de obscuridade. Os táxis e os ônibus não são como na infância. No Rio, as cores que ajudavam a identificar os carros, agora não existem, está tudo padronizado. Como a própria vida em que se exige uma padronização para o comportamento do homem, da mulher (negando outras identidades para além dessas) a forma dos nomes devem ser, as orientações  sexuais, o tipo de emprego, o trabalho que deve ser feito as várias cobranças e expectativas criadas.

Antes de escrever esse texto reli esse trecho dos taxis "cobram por destino e não por distância". Penso muito nesse mundo em que tudo parece conectado e que em tese facilitaria as nossas relações. Mas o que fazemos de nossas vidas é sempre cobrado. O nosso destino. E no final "A Vez de Morrer" fala dessa tentativa de Izabel e de todos nós de fazermos o nosso destino, sem essas cobranças.


 
 
 
 








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