sexta-feira, 26 de maio de 2017

O sexo que é?

Li que esta semana a Ru Paul recebeu uma série de comentários agressivos e até mesmo ameaças por ter desclassificado uma participante do seu reality show. Li um texto que associa a violência cometida por parte do público gay à heteronormatividade. Vale a pena lê-lo aqui.

Eu não descarto a ideia do texto, mas penso que, sendo a própria heteronormatividade como uma das características de uma sociedade machista, gosto de ir além dessa ideia e pensar na própria construção das masculinidades hegemônicas tendo como um de seus alicerces a violência. Por isso sempre é importante refletir sobre os papéis de gênero.

Nos estudos de masculinidades e violência são recorrentes o uso de dados que associam o alto número de mortes violentas com o comportamento masculino. Homens jovens em especial lideram várias estatísticas de homicídios e outras formas de morte violenta.

Diversas áreas do conhecimento têm contribuído para essa reflexão, especialmente no que diz respeito aos aspectos da própria sociedade sobre o papel esperado para o comportamento masculino. Ser "homem de verdade" muitas vezes significa correr riscos e usar a violência como forma de resolução de conflitos. Nesse sentido a psicologia e a psicanálise também têm as suas contribuições.

Recentemente tenho procurado textos da psicanalista feminista Nancy Chodrow. Pelo que observei ela questiona a premissa tradicional freudiana- de base biológica, trazida pra psicanálise- e lacaniana - que relê Freud tendo como uma de suas bases a antropologia de Levi Strauss- a respeito da diferenciação entre meninos e meninas. Aliás estamos em tempos de maior questionamento a respeito do binarismo sexual, mas para aprofundar sobre isso seria necessário outro texto. Vou me ater a questão proposta por ela.

Nos Três Ensaios, Freud diz que a diferença sexual que as crianças fazem a partir do momento em que meninos e meninas pensam ser possuidores do pênis, até o momento em que o menino percebe que ele tem a menina não (complexo de castração) e a menina percebe que ela não tem o pênis (inveja do pênis). Lacan retoma isso no campo da linguagem e do simbólico em que a mulher é o "sexo que não é", ou, como dizia o meu ex professor Clauze, uma lógica do sistema de numeração binária 0 e 1. Ok, vai ter uma ruma de lacanianos dizendo que não é assim, que Mulher é um conceito, que não é a mulher real (ou da realidade) etc e tal, mas é fato que há críticas a sua obra nesse aspecto.

Chodorow coloca a noção de que ser homem não é uma afirmação fálica, mas sim uma negação do feminino. Ao invés de uma afirmação, o masculino se dá através de uma negação. Até relacionei nesse sentido com o ritual de passagem descrito na tribo Anga da Nova Guiné em que os rapazes, para fazer a transição para a vida adulta, devem engolir o semen de jovens mais velhos como forma de expulsar o efeito do leite materno ingerido quando criança.

Em nosso mundo ocidental, ser homem muitas vezes é negar tudo aquilo que é postulado como feminino. A aproximação com o feminino é motivo de piada, desonra e mesmo violência. E está na base das diversas formas da LGBTfobia. E de que maneira essa violência usada na construção do masculino atinge homens cis não heterossexuais, sendo nós também alvos dessa violência machista?

A nossa orientação sexual, por mais que existam várias discussões sobre se nascemos com ela ou se a aprendemos, é modulada ao longo dos anos. E os meninos ao longo do seu desenvolvimento vão aprendendo que a violência, independentemente de sua orientação, é a maneira como são resolvidos os problemas, que é a forma da afirmação de sua identidade, do seu ego.

É nesse sentido que um hetero torcedor de um time e um gay com sua diva musical favorita se aproximam. As escolhas que fazemos, sobre o que e quem amamos passa por um investimento narcisista e, diante da ameaça por parte de outra pessoa, de outro time ou preferência, a resposta, pra tentar manter esse ego masculino inteiro (tarefa inglória) se dá justamente pela violência.

Claro que aqui é bom observar que há discrepância grande entre os privilégios dos homens cis heterossexuais dos que não são, o que nos coloca em situação de maior vulnerabilidade. Ainda assim, esses aspectos da nossa socialização e a forma como isso está presente em nosso desenvolvimento psíquico não podem ser descartados.

Nesse sentido é importante percebermos esses aspectos das masculinidades hegemônicas e de que maneira ela nos afeta, de forma negativa, o nosso comportamento, bem como nossos sentimentos e a nossa possibilidade de expressão emocional (como o texto que eu mencionei já coloca). Que esse comportamento paradoxal que elege uma diva, mas estimula rivalidade, agressão e tudo mais não contribuem de forma positiva tanto na nossa realidade externa como em nossa subjetividade.

E também cabe o pensamento: ao invés de nós, homens cis, perguntarmos apenas "O que querem as mulheres", pois na maior parte das vezes a pergunta vem como forma de colocá-las como seres "complicados" é pensarmos "quem realmente somos e o que queremos ser" e perceber que as complicações, na verdade, são para todos nós e não tá baseada em nossa identidade de gênero.

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