quinta-feira, 23 de novembro de 2017

As Natálias que conheci

Retomando o Liquididificador, resolvi pegar uma lista de temas que eu tinha deixado no meu bullet journal em julho (olá procastinação, minha velha amiga!) e resolvi postar mais. O primeiro tema dessa lista era, justamente, o título desta postagem. Além disso ele se relaciona com o mais recente.

No remake de 2006 da novela, “O Profeta”, Natália (Vitória Pina) é filha de Dedé (Zezeh Barbosa). É uma menina negra de pele clara que tem vergonha da mãe, que tem a pele escura. Em uma cena que viralizou no Facebook e que, infelizmente, não consegui encontrar, ela despeja a raiva que sente da mãe por conta do racismo internalizado.

A cena é um exemplo da manifestação do chamado “colorismo”. No Brasil. O racismo é mais forte contra pessoas de pele mais escura. No podcast de que participei, num primeiro momento apareceu a impressão de que o colorismo era um recurso que nós negros usamos uns contra os outros, sem o envolvimento de pessoas brancas. Mas a situação não é essa. A branquitude mantém a sua hegemonia com essa cisão e, por mais que o tom da pele aponte diferenças na forma de tratamento, o negro de pele clara não desfruta dos mesmos privilégios das pessoas brancas.

Algumas pessoas da militância negra afirmam que, diante de um preto de pele clara praticando colorismo, não cabe a gente apontar a sua negritude, que isso deveria ser um processo de auto descoberta. Eu, por exemplo, lido com alguns adolescentes com essas características, mas reparo que entre aqueles que se politizam mais, depois de um tempo assumem a sua negritude, sem que haja, de fato, a necessidade de apontar isso.

Por outro lado eu me lembrei da minha infância. Minha mãe, do jeito dela, sempre apontou essa questão. Creio que por conta das experiências dela, por ter a pele escura, sempre procurou passar pra mim e pra minha irmã as formas como isso acontece. Dessa forma, ela já nos ensinava como lidar com crianças negras de pele mais clara que procurariam diminuir a gente, especialmente a mim, que tenho a pele mais escura que a da minha irmã. Ensinou a gente a apontar a negritude delas. E sempre funcionou. Toda vez que eu tive que lidar com uma “Natália” na minha infância eu mandava “não fala nada, que você também é preta ou preto”. Alguns podem ver isso como crueldade entre crianças, mas era a forma de lidarmos com o racismo internalizado entre a gente. E em muitas vezes, já na transição pra adolescência, tive algumas respostas positivas por ter ajudado alguns outros negros que não se percebiam assim.

Anos mais tarde, fui me encontrar com um rapaz. Ele era um pouco mais claro do que eu. Rolou o que tinha que rolar e, lá pelas tantas ele dizia orgulhoso que “dentre os meus irmãos eu sou o único branco”. Eu, sem noção e de supetão disse “mas você não é branco”. O rapaz ficou quieto. Desde aquele dia não rolou mais nada, apesar de ter sido uma noite muito boa. Algum tempo depois eu o encontrei na fila do cinema e o ele tentou fingir que não me via.

Já li alguns textos apontando que o colorismo foi uma forma de dividir os negros e impedir o seu fortalecimento, já nos idos coloniais. Na mídia, reparo que diversos papéis que poderiam ser feitos por pessoas negras de pele mais clara foi feito por pessoas brancas. De cara, me lembro da minissérie Agosto (1993) em que Salete, uma das protagonistas da série, é vivida por Letícia Sabatella, ao passo que sua mãe, Sebastiana é vivida por Léa Garcia. O mesmo vi duas vezes com Betty Faria, na adaptação de “O Cortiço”, em que ela vive Rita Baiana (personagem negra) e em Tieta, atualmente em reprise no Viva, que no livro não é uma mulher branca. Aliás, a Madame Antoinette- como ela é conhecida em São Paulo- para poder justificar que é francesa, diz que é mestiça, pois sua mãe é das Antilhas Francesas, local que recebeu um grande número de africanos escravizados, a exemplo do Brasil. Lembro-me de Maria Ceiça, atriz negra, que no documentário “A Negação do Brasil”, fala do seu maravilhamento ao perceber que muitas das personagens de Jorge Amado poderiam ser feitas por ela.

Aliás reparo que atualmente, alguns desses papéis, tem sido interpretados por atrizes como Juliana Paes e Nanda Costa. Porém, aqui no Brasil, muitas vezes elas são lidas como “morenas”. Aliás muitos fazem a mesma leitura para Camila Pitanga, mas essa sempre faz questão de afirmar a sua negritude. Lembro-me também de Sônia Braga, que entrevista já disse que apontava sua ascendência portuguesa diante dos americanos que não a leem como mulher branca ou “morena”. Aí é uma boa reflexão de como as relações raciais não são naturais, nem únicas, mas tem toda relação com o contexto social em que elas se dão.


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