segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Millenium II : A menina que brincava com fogo




O segundo livo da trilogia, Millenium II: A menina que brincava com fogo ( Stieg Larsson, Companhia das Letras,608 páginas) dá continuidade aos fatos ocorridos na obra anterior, aprofundando mais sobre a vida da protagonista, Lisbeth Salander, contando com a participação do jornalista da revista que dá título à obra, Mikael Blomkvist, a partir de três assassinatos.

Na trama, dois amigos de Blomkvist, a pesquisadora Mia Bergman e seu marido, o jornalista Dag Svensson são assassinados, assim como o tutor de Lisbeth, o advogado Nils Bjurman. Os dois primeiros estavam colaborando na investigação de uma rede de tráfico de mulheres para uma matéria para a Millenium. E nos três homicídios, Lisbeth é a acusada e passa a trama escondida e Mikael tenta achar os verdadeiros culpados. Enquanto isso a mídia a trata como inimiga número 1 da sociedade e a polícia entra numa caçada a ela.

A história é contada por datas ao invés de capítulos. O narrador em cada dia marcado conta os fatos acontecidos, assim como as lembranças das personagens. O que chama a atenção em muitos casos é que o narrador não é apenas um observador distante dos fatos e onisciente, mas em dados momentos ele coloca, em sua narrativa, as palavras que são pensadas pelas personagens.

Os fatos são escritos em ordem cronológica e a história se passa no começo dos anos 2000, em que podemos perceber a grande presença do aparato tecnológico para não apenas servir de instrumento de comunicação, mas um recurso que Lisbeth usa para descobrir o que deseja, afinal ela é uma hacker. A narrativa é linear, sendo que em alguns pontos o passado aparece de forma narrada pelas personagens ou ainda pelos sonhos da protagonista.

Os acontecimentos se dão inicialmente no Caribe, onde Lisbeth resolve tirar férias e depois regressa a Estocolmo. É interessante que o autor não trata a cidade apenas como um mero cenário, mas descreve os lugares, o nome dos bairros, bem como os lugares ao redor, o que pode ser convidativo a um futuro turista, caso queira conhecer futuramente a capital sueca.

E em meio a esses lugares temos Lisbeth saindo do seu apartamento antigo, deixado aos cuidados de Miriam Wu e compra um novo, maior e em bairro mais nobre. O apartamento antigo, deixado pela mãe, representa justamente o lugar onde ela passou parte de sua vida - quando não estava internada em clínicas - incluindo as lembranças violentas de sua infância. No novo, o apartamento apresenta uma paisagem quase estéril, com poucos móveis com grandes vazios, mostrando um pouco como é a Lisbeth adulta depois de tantos acontecimentos tendo que forjar a sua identidade, sempre escondida (por uma série de motivos) em detrimento do que os médicos, a polícia e a mídia diz a respeito de si.

A narrativa de Larsson é fácil de ser assimilada, com muitos diálogos entre as personagens explicando ao leitor o que está acontecendo. O começo do livro tem um longo enredo, considerado por alguns desnecessário, mas que vai construindo para o leitor a relação que Dag e Mia vai estabelecendo com a Millenium, bem como as suas investigações, assim como o comportamento de Lisbeth, para além do clichê "garota misteriosa doidona que não fala com ninguém". A ação em si vai ocorrer a partir do último terço do livro.

Um ponto fundamental apresentado pelo autor, além da crítica a uma sociedade machista que violenta as mulheres é como certas estruturas contribuem para manter esses sistema, em especial a mídia e as instituições de saúde mental. Larsson pode não ser nenhum Foucault ou mesmo Basaglia, mas não deixa de ter uma visão crítica de como essas instituições criam narrativas sobre as pessoas, rotulando-as em diagnósticos que não correspondem a quem a pessoa realmente é, como pode ser evidenciado neste trecho:

"O diagnóstico que a mídia apresentava sobre Lisbeth Salander variava segundo as edições e os jornais. Ela era descrita ora como psicótica, ora como esquizofrênica com tendências à mania de perseguição (...) Os leitores só podiam concluir que ela era desequilibrada e inclinada à violência".
E a crítica em muitos pontos também vai para pessoas ou instituições que se colocam por vezes como progressistas. Isso ocorre quando se sabe que uma das famílias adotivas de Salander era de sociólogos que queriam adotá-la só para mostrá-la como um troféu no estilo "olha como sou legal, adotei essa menina", o que desperta a revolta de  Lisbeth. Outro trecho que exemplifica bem essa crítica é este:
 "Nem mesmo as reportagens mais compassivas, temperadas com uma pontinha de crítica ao sistema, que exibiam manchetes como "Uma falha da sociedade" ou "Ela nunca recebeu a ajuda de que precisava, conseguiam minorar seu papel de inimigo público número um - uma assassina"

Em alguns pontos sinto que a trama parece com novela da Globo, com "coincidências" para poder desenrolar a trama, como por exemplo no momento em que Salander vai à casa de campo de Bjurman e aparecem os capangas de Niedermann, um dos vilões da história.

Voltando ao ponto do machismo, é interessante observar como Larsson constrói a sua narrativa a partir do olhar dos homens. Melhor explicando, ao invés de ser um autor que busca traduzir a "alma feminina", ele coloca as observações que os homens (bem como instituições) fazem das mulheres e como se comportam com elas. E não só com Salander, mas também com Miriam - onde fica evidenciada a lesbofobia, pela forma como a imprensa e um policial a trata - e na conturbada relação entre Sonja Modig (uma das investigadoras da polícia) com seu colega de trabalho.

Outras duas observações sobre esse "masculino" que cabem ser notadas estão em duas personagens: o médico psiquiatra que atende Lisbeth na clínica onde ela é internada, Peter Telehorian, e o jornalista Per-Ate Sandstorm.

O primeiro é descrito como o pior homem que Lisbeth conheceu, ainda que ele não a tenha estuprado. Ele é um sádico que não se contenta com o silência dela e usa seu "tratamento" como um jogo para satisfação de seu desejo. Uma vez que Lisbeth se recusa a responder às perguntas dos psicólogos, Telehorian a forçava a reconhecer a existência dele. E se for pensada a forma como os homens tratam as mulheres de uma forma geral é isso, é uma objetificação, mas com uma necessidade narcísica do olhar delas para reconhecer o seu suposto poder. Quando isso não acontece, muitas vezes se recorre à violência. Pode se pensar desde o cara que quer forçar uma menina a ficar com ele numa noitada a um marido que mata a sua esposa.

E nessa objetificação, o  estupro cometido por Sandström, além dos aspectos já mencionados, é uma performance a ser vista por seus colegas, para deleite deles. E seu grande medo (assim como de outras personagens) não é baseado no que ele fez com as mulheres, mas do olhar da sociedade julgando-o e acabando com a sua reputação.

Mais uma vez é colocada essa questão do olhar do outro e essa necessidade de afirmação narcísica dos homens. Seja esse olhar de Lisbeth, dos colegas ou mesmo da própria sociedade em si. É esse é um dos pontos em que o masculino se sustenta na obra de Larsson.

E ainda sobre personagens masculinos, Niedermman é colocado como um tipo estranho, esquisito e incapaz de sentir dor por conta de sua genética. E é uma personagem, na descrição de Zala (chefe dele) como assexual. Fico pensando porque a assexualidade é sempre elencada junto com patologias e não como uma variação da sexualidade como tantas outras. Aliás, é legal ver na obra personagens que não são heterossexuais apenas.

No mais a mais é uma obra que prende pela trama, pode trazer grandes reflexões não só apenas sobre nossa sociedade, mas de que maneira nos relacionamos uns com os outros, bem como as instituições presentes nelas.







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