terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O Estrangeiro

Pensei que poderia ser esse um texto mais formal, pra tentar minha habilidade em fazer uma resenha crítica e tal de um livro que entrou na minha meta de 20 livros de 2017. Na verdade, nunca fui de contar quantos livros leio por ano, mas esse ano resolvi entrar na brincadeira do Good Reads.

Quando o Wagner esteve na minha casa no começo desse ano, vi que ele tinha um exemplar de "O Estrangeiro" de Albert Camus (1913-1960). Fiquei curioso e como não tinha nada pra ler (mentira, tenho uns 3 ou 4 livros pendentes que pretendo lê-los esse semestre ainda) resolvi fazer o mesmo. É pra ele também que dedico esta postagem.

Eu me lembrei dos tempos de faculdade em que uma colega comentava sobre "A Peste", do mesmo autor. Ela estava lendo numa época em que fizemos um trabalho sobre teorias da personalidade e estávamos justamente pesquisando sobre a abordagem fenomenológica-existencial em psicologia. Aliás, pra quem tem curiosidade sobre, só clicar aqui, que tem uma explicação da abordagem.

Enfim, tem muita coisa a ser dita sobre um livro curto. Então vamos a elas.



O enredo não é complexo. A personagem principal, Mersault, um argelino pied-noir (nome cunhado a partir dos anos 60 para franceses e seus descendentes vivendo na Argélia) é acusado de assassinato de um árabe numa praia próxima à Argel. E a trama é dividida em duas partes: a primeira que narra os fatos que começam na morte da mãe de Mersault até o assassinato e a segunda, que mostra a personagem contando os fatos a partir da sua prisão até a espera de um recurso que o absolva da pena. Tudo isso narrado em primeira pessoa.

No começo eu fui acompanhando a história e achei ela comum, o famoso "até aqui nada demais", mas na espera de que algo fosse ocorrer. Foi então, a partir da segunda parte, que pude entender a conexão que existe com a primeira e porque aquele "banal" era imprescindível para a trama.

A questão principal é que, diante do homicídio, Mersault passa a ser julgado pelo seu comportamento diante da morte da mãe e por ter se envolvido sexualmente com Maria e não pela morte do árabe em si. Aliás, sobre "o árabe" há questões que comentarei depois.

Mersault age de forma aparentemente indiferente diante da morte da mãe. Ele vai ao asilo, acompanha os preparativos, como se fosse um dia como um outro qualquer e não demonstra tristeza. Depois, ele se envolve com Maria, recusa uma transferência da firma que ele trabalha para França e se envolve na situação de seu vizinho Raimundo, que espanca a sua amante árabe e cujos irmãos querem vingança. É com um deles que Mersault se envolve em uma briga, matando-o.

As ações vão acontecendo sem que o personagem tenha uma intenção. O crime, por exemplo, ocorre em um momento em que o protagonista está sob efeito do sol escaldante na praia, mas não há um desejo de vingar o amigo perseguido pelos árabes. Aliás é interessante que no livro Raimundo fala a respeito da camaradagem masculina e Mersault se mostra indiferente à amizade dele. O mesmo ocorre com Maria, que pergunta sobre casamento e pra Mersault "tanto faz". A ligação dele com ela é evidenciada mais pelo desejo sexual do que afetivo.

Aliás a forma como Mersault lida com a vida aparecem em três pontos que me chamam muito a atenção: no enterro da mãe, na proposta do patrão e na cena final com o capelão. Ao comentar sobre os dias de trabalho após o enterro ele diz:

"Pensei que passara mais um domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim das contas, continuava tudo na mesma "


 Essa forma de ver as coisas, de que tudo permanece na mesma é um ponto chave para perceber o comportamento dele. Três pessoas pedem que ele mude. Elas são o chefe, que pede que ele tenha ambição ao propor que ele se mude para França, o juiz, que antes do julgamento, peça que ele se arrependa do que fez empunhando um crucifixo- ironia para a França berço da Revolução que separou Igreja e Estado e que, apesar de ser nos anos 40, é uma discussão atual - e o capelão, que pede a conversão dele ao teísmo no momento em que ele espera o recurso sobre a pena capital.

Vejo nessas três figuras, bem como o promotor, o advogado, o porteiro do asilo a representação de uma ordem que procura dar um sentido para a existência, quando na verdade ela não tem. O comportamento deles ajuda perceber um pensamento do protagonista, diante do seu julgamento "as qualidades de um homem vulgar podiam erguer-se esmagadoramente contra um culpado".

A forma como ele descreve o julgamento mostra o grande abusurdo. Primeiro em que em nenhum momento é levado em consideração o homicídio, mas o caráter de Mersault: o fato de colocar a mãe no asilo, não demonstrar tristeza no enterro, arrumar uma namorada (que para ele é Maria e pr'os que julgam, amante) logo após a morte da mãe e se envolver com uma pessoa de "vida torta" (vou usar esse termo do meu pai) como Raimundo. Para quem julga, tudo isso foi premeditado, tem uma intenção, algo intrínseco ao caráter de Mersault. Para quem sabe da primeira parte do livro sabemos justamente que ele não faz nada de forma premeditada e nem tem uma "essência" de indiferença. Aliás o mote do existencialismo aparece aí "a existência precede a essência". Tanto é que ele afirma:
"Mesmo do lugar dos réus, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos (...) Tudo se passava sem a minha intervenção. "

 Encaro isso justamente como uma boa metáfora da nossa existência. Estamos sempre sob o olhar dos outros que colocam observações sobre nós mesmos. Mersault compara os olhares dos jurados a dos passageiros em um transporte coletivo quando entra alguém que não estava nele antes e é medido pelos olhares. Mais ou menos a sensação que tenho ao entrar no metrô, por exemplo. E existem mecanismos que usamos para repreender a nossa auto expressão. Percebo isso na figura do advogado que constantemente recomenda a Mersault que ele não fale nada durante o julgamento. Quantos advogados como esse não encontramos nas nossas vidas, sejam outras pessoas, sejamos nós mesmos?

Um observação que faço é sobre Celeste, que apesar de atrapalhado, o dono do bar frequentado por Mersault tenta defendê-lo o tempo todo. Interessante observar que o bar pode ser visto como um lugar de contraponto à ordem, especialmente nos anos 40, pois é um lugar de diversão, bebida, mulheres, diferente do que é apregoado pelo patrão, juiz e pelo capelão.

A questão da camaradagem masculina, apontada por Raimundo, também entra em xeque se percebemos que os principais atores que contribuem parao destino de Mersault são homens. Penso: por que nós, homens, só somos camaradas se agimos com aqueles do nosso bando que fazem exatamente as coisas que queremos, uma espécie de projeção narcísica e, quem não é do jeito que desejamos, é condenado.

Em relação ao árabe fica o meu grande incômodo com a obra. Ele não tem nome, não tem descrição física, nada disso. É só um árabe irmão da amante de Raimundo e que anda com outros árabes a seguí-los e vingar o espancamento da irmã pelo amante (aliás, Mersault foi testemunha favorável a Raimundo na delagacia). Pode-se dizer  "ah, anos 40, natural esse preconceito". Mas nenhum preconceito é natural.

A maioria dos prisioneiros são árabes (estamos falando de uma Argélia sobre domínio francês, logo os que detém poder sobre o ordenamento jurídico) e a vítima do homicídio não é em nenhum momento mencionada no julgamento. Isso é um ponto bem interessante também.

Mersault tem um outro vizinho, o velho Salamano, que vive com um cachorro que também está velho e que vive sendo agredido pelo dono. Em dado momento ele foge de casa e o velho o chama de "O Rei da Fuga". Deve ser uma referência à Houdini e, no século seguinte, será nome de um filme (já comentado neste blog) de Antoine Giraudie que fala justamente de um homem cansado de sua vida e que resolve fugir com uma adolescente.

A mãe de Mersault antes de morrer se envolve com Perez no asilo. Ele ao testemunhar afirma, diante da pergunta do promotor, que não viu Mersault chorar. O advogado, sagaz, pergunta se Perez viu Mersault não chorar e ele se confunde e ouvem-se risadas. Daí vem a tirada sensacional do advogado:

"Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade"
Será que a vida não é desse jeito, Muito do que fazemos corresponde sim a algo factual e verdadeiro. Mas o julgamento que fazemos das pessoas a partir do que é feito, será que ele corresponde ao que é verdade?

Ainda sobre o asilo há o porteiro, que é um velho que se não fosse o trabalho ali seria um indigente. E Mersault aponta que ele fala dos outros idosos como se ele não o fosse. O próprio protagonista, momentos depois, se corrige ao falar dos outros prisioneiros, quando ele é apontado como diferente dos demais (afinal é um pied noire entre árabes) e ele faz questão de dizer que é como os outros.

Para Mersault não importa a morte dos outros, o amor da mãe, Deus, "os destinos que se elegem" (Paris, rendenção divina) já que o destino de todos nós é a morte. Somos como o porteiro do asilo, tentando se diferenciar enquanto a morte nos iguala.

A relação de Mersault com a vida e com a morte deixa entendermos como foram as suas ações. Ele no corredor da morte e a mãe no asilo (e podemos pensar também no velho cachorro de Salamano) se sentem libertados. A consciência do fim dos dias mostra a indiferença do mundo e então ele afirma que ninguém poderia chorar sobre o caixão de sua mãe, já que ela conseguiu sua libertação.

E daí se alguém observa a obra como algo angustiado, niilista, creio que ele se trata de uma celebração da vida (aliás, Camus diz que diante do absurdo da vida não cabe o suicídio, mas revolta). Isso fica muito claro pra mim nessa afirmação:
"Compreendi então que um homem que tivesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se maçar. De certo modo, isso era uma vantagem"

Mais que buscarmos uma rendenção divina ou aceitar papéis pré estabelecidos pelos outros poderíamos prestar a atenção em nossas experiências. Nesse sentido, Mersault poderia dialogar perfeitamente com Alberto Caiero, um dos heteronômios de Fernando Pessoa. E por celebrar a vida desta maneira, paradoxalmente com fraternidade à indiferença do mundo, ele prefere que em sua condenação todos os odeiem que a compaixão.

Enfim, "O Estrangeiro" é um daqueles livros que realmente causam impacto e que permite que eu faça uma postagem gigante como essa, sabendo que tem muito mais coisas que ainda podem ser ditas sobre essa obra. Estou feliz nesse sentido por retomar a leitura e escrever por aqui.








Nenhum comentário: