quinta-feira, 23 de março de 2017

O lugar de fala como lugar de escuta

"Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto..." (Fala, Luli e João Ricardo)
Creio que posso estar me repetindo aqui, mas estou há tempos para colocar algumas reflexões sobre a questão do lugar de fala. Um dos motivadores foram alguns textos do Tullio, que também abordam a questão sistêmica, da qual quero comentar aqui também.

Resolvi por um tempo, em redes sociais, ler mais e ouvir mais as pessoas do que necessariamente sair emitindo opiniões. E um desses aprendizados foi sobre o chamado "lugar de fala" e as "vivências" no que diz respeito à minorias. Grosso modo, por esse princípio só um negro pode apontar e falar sobre racismo, mulheres sobre feminismo, bissexuais sobre bifobia e por aí vai. E nesse aspecto li tantas ideias que apoiam essa noções como as de críticas, as mais diversas. Aqui vou destacar duas vertentes que me chamaram a atenção neste período.

Uma de caráter mais racionalista, aponta que o importante não é a pessoa que fala - isso seria uma forma de falácia "ad hominem - e sim aquilo que é dito. E a partir do que é dito, parte-se para a verificação se aquilo é verdadeiro, factual, se pode ser corroborado. Logo, o lugar de fala estaria dando uma ênfase mais subjetiva para a pessoa que fala do que para a observação dos fatos.

Outra, que observei em alguns discursos da esquerda, aponta o lugar de fala como algo "pós-moderno". Seria uma deturpação da luta das pessoas que são oprimidas, pois ao valorizar essa subjetividade, a importância é dada em aspectos individuais da dita vivência, um vício burguês em detrimento de uma visão social, coletiva. E que a defesa das várias identidades esconderia a luta que realmente interessa, que é a luta de classes. Os aspectos históricos e sociais nesse sentido estariam desprezados em nome da afirmação do eu.

Penso que nas questões que me dizem respeito eu me fortaleço sim com argumentos mais factuais e jamais vou desprezar as condições sociais e econômicas diante de uma certa luta. Um gay da Vieira Souto não possui, de fato, as mesmas condições e realidade de um do Pavão-Pavãozinho, no mesmo bairro. No entanto para além desses aspectos mencionados, são fundamentais ter uma visão sistêmica das coisas e também o lugar da escuta.

Um exemplo entre essas críticas foi exemplificado comparando Gregório Duvivier e Fernando Holiday. O primeiro foi criticado por escrever uma coluna na Folha de São Paulo um texto antirracista e sendo ele branco não poderia fazê-lo por não ter o tal "lugar de fala". O segundo por sua vez, ainda que tenha o local de fala de duas minórias (é negro e homossexual) tem um discurso LGBTfóbico e contra as lutas do movimento negro, o que exemplifica a visão racionalista de que o mais importante é o que é dito do que quem fala. Ou seja, antes um Gregório branco como aliado que um Holiday negro bostejando o de sempre, agora com poder legal de sua vereância,.

Nesse sentido cabe uma visão mais sistêmica das coisas. Legal ter aliados e não tenho nada contra o Gregório se posicionar contra o racismo. Acho muito importante esse tipo de posicionamento. Mas cabe a pergunta; quantos colunistas negros debatendo racismo existem naquele e nos demais grandes veículos de comunicação? E no caso do Holiday, quantos negros há na Câmara de Vereadores paulistama? E quantos negros fazem parte do chamado Movimento Brasil Livre e o mais importante, quantos negros financiam esse movimento.

Não se trata aqui de livrar a cara do Holiday ou demonizar o Gregório. Penso que uma visão maior das estruturas pelas quais os discursos de combate as diversas formas de opressão circulam e, tão importante quanto, o quanto e como essas mesmas estruturas muitas vezes silenciam as falas. Daí também a necessidade do lugar de escuta.

Ainda sobre o lugar de fala e vivências e no quanto o subjetivo também é importante, eu me lembro que aos 11 anos, um colega de turma que também era meu vizinho, estava numa espécie de fofoca-bulying com a turminhha da sala dele comigo, me zoando pelo fato de eu ser filho do porteiro do prédio onde morávamos. Ao comentar com minha mãe - e disso nunca me esqueci- ela me disse "não espere que o grupinho te defenda. É você mesmo que tem que saber se posicionar. E não deixe um branco falar por você sobre o racismo que você sofre".

Outra lembrança minha vem da época do meu vestibular, a minha amiga Ana me disse "Odilon, como você quer ser psicólogo se você fala muito mais de você e ouve pouco?". Fiquei pensando nisso e a experiência ao longo dos anos, especialmente ouvindo as vozes de adolescentes negros em sua grande maioria e moradores de favelas cariocas me ensinou o quanto era importante ouví-los e ao mesmo tempo trocar as experiências.

Ainda questiono comigo mesmo se sou um bom ouvinte, mas tenho feito vários exercícios nesse sentido. E também observado mais as coisas com mais sensibilidade e entendendo certos privilégios que tenho enquanto homem cissexual. Há um mês, por exemplo, eu e meu namorado recebemos uma amiga muito querida na casa dele e junto havia um amigo hetero dele também. Ela é uma pessoa inteligentíssima e estava muito interessado no que ela tinha pra dizer, mas notava o quanto ela era interrompida pelo meu namorado e mais ainda pelo amigo. Então no momento em que em tese eu daria continuidade à conversa eu me calava pra poder ouvir a nossa amiga. Obviamente não entendo o meu gesto de "oh o homem bonzinho que deixa a moça falar, quer biscoito?", mas o mais importante pra mim foi me permitir mais ao que ela tinha pra dizer e pensar na minha ansiedade e nos meus privilégios nessas aparentes coisas cotidianas. E a partir da fala dela eu respondia dando continuidade ao diálogo E foi maravilhoso poder ouví-la mais.

A partir dessas e de outras experiências penso que uma boa observação dos fatos e fazer os diversos recortes, inclusive de classe, no que diz respeito a fala de pessoas de grupos marginalizados é fundamental. Assim como abrir mais espaço para que essas várias vozes falem, se manifestem e principalmente, se escutem. Entendo que o motor das mudanças sociais de certos grupos parte de dentro deles mesmo para aí sim ganhar espaço para além do próprio grupo. E há inúmeras lutas. Mas isso só é possível com o fortalecimento sim das pessoas dos ditos lugares de fala, para que tenham cada vez mais espaço para o que elas tem a dizer e, fundamentalmente, que haja espaço de escuta para que se tenha efetivamente um diálogo que ajude a promover mudanças de fato.

E isso não pode se restringir apenas no próprio grupo, até porque dentro de um grupo que divide uma mesma categoria identitárias há inúmeras diferenças. Há de se questionar as estruturas de poder que dão sustentação a isso, a observação das relações que existem nos sistemas e mecanismos de opressão e partir para um enfrentamento que não despreze o que é factual também. Sem amarrar esses diversos pontos e sem um lugar para a escuta, o chamado lugar de fala vai se restringir sim a uma mera vivência de webativismo em rede social mais preocupada em "lacrar" que realmente propor algo que venha garantir direitos.




                                     

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