sábado, 11 de fevereiro de 2012

A Garrafa de Água



"Namorar implica em negociar, em renunciar, mas também em ter muito prazer no estar com o outro, em fazer coisas juntos, e uma série de possibilidades que emergem do conhecimento mutuo e da segurança do vinculo. Talvez exista aqui o problema de que a mídia prega a relação amorosa como sendo instantânea e natural. A ideia transmitida é que desde que haja amor todo resto é resolvido por "osmose", simplesmente tudo aconteceria como num passe de mágica. Sabemos que essa é uma versão achocolatada e idealizada do amor. Assim diante do primeira dificuldade, da primeira diferença de interpretação do mundo, podemos recorrer ao chocolate ou ao sexo fácil como alternativa a nossa angústia diante de nossa dificuldade de encontrar soluções criativas para a vida cotidiana a dois. "




Esse trecho vem de um antigo texto do psicanalista Júlio Nascimento do Mix Brasil. Ele expõe uma dicotomia de nosso desejo, que penso ser um contraponto de duas "eternidades"a de eros, a pulsão de vida e a de Tanatos, a pulsão de morte.

Mais uma vez eu fico sabendo de uma velha história recorrente, especialmente quando estamos às vésperas do carnaval. Alguém encontra Outrem e tem daquelas paixões avassaladoras a ponto de já se permitirem namorar após o primeiro ou segundo encontro, inciativa de Outrem que Alguém prontamente concorda e deseja. Decidem experimentar a relação que acaba seis dias depois, após algumas discussões por motivos fúteis e Outrem dá como argumento para o término: preciso experimentar a putaria porque ainda tenho feridas de um relacionamento anterior.

Alguém reclama, pois saiu também de uma situação parecida e estava completamente disposto e encantado pronto para participar desse relacionamento. Alguém é do tipo romântico, se abre muito, sensível e mostra para Outrem todo o seu carinho, afeto e atenção, ainda que uma pulga atrás da minha orelha sempre me diga que Alguém tem mais prazer no relacionamento, em dar carinho a alguém (esse assim mesmo em minúsculas) do que realmente nomear Alguém. Ai está o paradoxo da puta e da freira romântica.

Outrem é um neurótico clássico. O eros que Alguém lhe oferece ao responder ao seu desejo de ter um relacionamento lhe causa um tremendo desconforto e uma incapacidade de lidar com o Outro. Ao que parece, enquanto Alguém me afirma na sua retórica romântica de que não pensava tanto no sexo em si, mas no carinho e afeto para Outrem, enquanto esse encarnava um tesão mais forte na cama, em detrimento dos carinhos de Alguém. 

Alguém enquanto sujeito do discurso apresenta o lado lindo do relacionamento, do quanto está feliz em viver aquela situação nova, um sentimento que não tinha sentido por ninguém antes e tudo o mais e esconde as pequenas brigas por motivos banais que mexem com o emocional e pouco diz a respeito das características de Outrem, restrito ao velho "é legal, gente boa, lindo, gostoso"...coisas superficiais e comuns a muitos alguens. E eu partilhei desse mesmo sentimento ao conversar com Outrem.

Júlio Nascimento aponta como metáforas o chocolate e o achocolatado. Outrem parte da premissa do achocolatado, de um relacionamento maravilhoso, mas que após a primeira discussão ele decide terminar por achar que tem que viver a putaria, o lado chocolate da história, ou seja, a simples gozada, a busca do prazer sem o ônus dos conflitos emocionais que a relação com uma outra pessoa implica. A sua justificativa de achar que Alguém é uma peça que não se encaixava em seu quebra cabeça é perfeita ao demonstrar esse lado achocolatado inicial, a busca de um romance perfeito e inquembrantável, uma peça que complementasse a sua falta, lembrando que a ausência da falta é terreno de Tanatos...a putaria lhe dá o prazer puro e simples sem cobranças.

Essa metáfora do quebra-cabeças - da qual também já sofri a maldita analogia - explica bem como funciona o neurótico. Há uma espécie de busca de prazer pelo poder. O carnaval batendo à porta com as inúmeras possibilidades de encontro significa um alívio, uma ilusão que compensa a sua castração, condição de todos nós humanos. É como alguém que ao beber a água quase no final que está na garrafa da geladeira não a bebesse toda e deixasse aquele resto ali como metáfora de horror ao vazio, à castração, o que implicaria, caso a bebesse toda, em ter que encher de novo toda a garrafa e esperar mais um tempo na geladeira para estar na temperatura ideal para beber nesse verão que vivemos cá nos trópicos.

O quebra cabeça completo é ilusório. Assim como Nascimento aponta o quanto certas ilusões como as drogas, o excesso de comida e outros comportamentos compulsivos pode nos acarretar a longo prazo, podemos pensar na quarta-feira de cinzas, o dia que vem depois do carnaval, que para católicos é o começo da quaresma. Período de expiar os pecados (afinal veio o carnaval antes, não?) que culmina na celebração de um deus-humano, Jesus, aquele que renunciou aos prazeres e se sacrificou pelos pecados de toda a humanidade. Jesus o ser completo, o que morre e ressucita por ser Deus.

Como não somos deuses, não somos o começo e fim, a completude alfa e ômega, somos dotados desse vazio. Como sentir-se "de bode" depois da festa ou da "blue monday" dos usuários de droga ou a lombeira que temos depois de comermos muito. O prazer é momentâneo e não dá garantia que aquela coisa chamada "vontade" não apareça de novo. Nas nossas contradições, o coração há de se fazer suas exigências e aí nem Outrem e nem ninguém terá como escapar disso. Como numa música dos meus queridos Pet Shop Boys "there's no place to hide when you're screaming inside".

Quanto a Alguém o movimento foi de sair de uma situação "chocolate" - com a devida latência- e partir para uma relação achocolatada. No entanto a breviedade dos acontecimentos talvez não lhe provocou dores maiores, mas uma necessidade de repensar o seu papel. Alguém me diz "Odilon eu não tenho como interferir nas escolhas do outros, mas nas minhas escolhas". Eu prontamente concordo e lhe digo se a garrafa tá vazia vai lá e a encha de novo e espere gelar. Para você que admitiu sua falta fica mais fácil partir para novas e ricas experiências do que Outrem, que prefere não só admitir seus erros, bem como maquiar a sua falta, que um dia há de lhe fazer pesadas cobranças, como aquele que abre a geladeira e pergunta "ei, quem foi o filha da puta que estava com preguiça de encher a garrafa e deixou esse restinho na geladeira?'. E diferente da sexta-feira santa, pode não haver o perdão.

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