sábado, 7 de abril de 2012

Um rei e seus espelhos

Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei
Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali                     Legião Urbana/Ico Ouro Preto






I


Ela tem 11 anos e chega com um sorriso bobo. Parece que ri de tudo, ainda brinca de bonecas e chama a todos de "tio". Mas com o tempo ela já deixa bem claro que é atenta à tudo o que se passa por ali. E faz a mãe chorar ao ler poesias de outras pessoas.


II


O Rei tem um decreto: olhe-se no espelho. Achava que era a dica perfeita a ser dada ao Poeta que, sem palavras e ao mesmo tempo diante dessa impossibilidade, parte para o Exílio em algum canto afastado daquele reino.


III


O exílio é repleto de pensamentos e sentimentos, mas só é real quando ele se torna escrito. Essa necessidade dói mais que o calabouço do Rei, mas é libertador.


IV


Enquanto as palavras doem no Exílio, lá no Reino o chefe diverte-se com as palavras prontas que ele julga ser simples. Ele busca ser um rei humilde, mas esquece que, para quem nasceu e deseja ser rei, aquilo era impossível.


V


No Exílio a menina chega e diz ao Poeta: "Tio, já reparou que no espelho quando a gente levanta a nossa mão esquerda a imagem levanta a direita?"


V


O Rei voltou atrás na sua decisão, mas teme ser incompreendido pelo Povo. Na verdade ele sabe que ele e o Povo é um só, a diferença que sendo ele Rei, ele manda. Então, nesse estranho jogo de espelhos ele abdica da sua responsabilidade em nome da prudência e nada revela a seus súditos.


VI


Poetas são perigosos. É melhor julgar o caráter deles, pensou o Rei. É a única forma que ele tinha, naquele momento de manter decretos ilícitos longe das vistas do povo, manter suas leis simples e fáceis ditas por outrem e resistir a qualquer criação artística que fosse diferente. Dizia que os poetas eram membros de uma elite fracassada, incapaz de abrir mão de seus privilégios em nome de um mundo novo que ele mesmo programara pra si naquele reino.


VII


A menina, no seu sorriso de onze anos trás lápis e caderno e diz ao Poeta: "Tio, agora só depende de você. Ninguém está vendo mesmo. Mandar o Rei se foder é bom certas horas".


VIII


O Poeta já sabe uma resposta e diz à menina: "não preciso mandar, o Rei já está fodido e ele tem consciência disso. Outro dia declamei um soneto chamado 'Perigo' e ele disse que deveria experimentá-lo por seus próprios pés, ainda que isso pusesse seu reinado abaixo, que Poetas inventam e não respeitam, só sabem criar imagens e ilusões. Foi aqui que fui mandado para cá, segurando um espelho que se partiu no meio do caminho". A menina pergunta que caminho era aquele, ao que o Poeta disse que ela só conhecerá o caminho que ela mesma determinar. Não há leis, reis ou frases prontas que ditarão o rumo que as coisas tomam. Ela gargalha e diz "Tio você diz umas coisas muito engraçadas". E some.


IX


O plano do Rei é descoberto. A menina, no dia da sua menarca, resolve contar tudo o que sabia ao Povo. Ela com os mesmos risos de sempre dizia que se fazia de boba, mas já sabia cada passo em falso do Rei, pois ela já se permitira à poesia e a chorar com sua mãe. O povo então não o deseja nem para figura decorativa na Nova República. Abole suas leis, some e restaura o Antigo Regime de lá, mesmo sabendo que poderia ser ainda pior. Inconformado, resta ao Rei partir para o Exílio ainda firme na questão dos espelhos.


X


No Exílio o encontro. Diante de um espelho inteiro e bonito o Poeta pergunta: levante sua mão esquerda e me diga que mão a imagem levanta? O Rei fica estupefato, mas se recusa a admitir o que os olhos lhe mostram. O Poeta parte para onde fora a menina, porém maduro para outros ares. Para o Rei diz que na verdade não tem nem um "si mesmo" ou espelho, que aquilo era efeito da luz, e que ele estava livre para fazer um novo Reino sem se prender a nada.

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