“Seria a experiência de que não somos grande coisa e, em particular, não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz. Isso parece (e é) uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir, mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nossa existência é uma outra história. Nesse momento final, o sujeito vivenciaria, logicamente, uma espécie de desamparo depressivo, mas também uma extrema liberação.Por que liberação? Pois é, o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo, pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições, é graças a ela que insistimos em ser sempre “iguais a nós mesmos” (sendo que, no caso, essa expressão não tem um sentido positivo).”–Contardo Calligaris, em “Cartas a um Jovem Terapeuta” Quibado daqui
Ainda me lembro que na época do meu primeiro relacionamento
o Fábio me disse: “Odilon, não cai nessa do ‘você é especial’ que isso é
mentira, balela”. Na época achei um tanto radical a postura do meu amigo (em
geral, meus amigos são radicais). Afinal, por que razão não somos especiais
para quem nos diz que nos ama? Parece cru, mas a minha experiência me mostrou
que a crueldade de fato está nesse “ser especial” muitas vezes.
Parei para pensar no mundo que me cerca - por vezes é muito difícil me alienar dele-
e pensei em alguns pontos. Na era em que vivemos não só reis, rainhas e
príncipes podem ser especiais. Tendo dinheiro você pode querer se sentir
especial pela roupa que comprar ou o carro que dirige. Se tem capital social
também você é o especial na área VIP no show aberto da Praia de Copacabana no réveillon.
Outros querem ser destaque, diferente das pessoas comuns em outras frentes.
Pode ser participando de uma palestra motivacional, lendo um livro de
auto-ajuda ou indo para uma igreja em que o pastor diz que você é um eleito
porque Jesus te ama e você há de prosperar.
Me vem a primeira pergunta: será que esse ter –
junguianamente falando – pode nos levar a sermos especiais?
E sobre ser especial para alguém? E quando se sai do plano
material e entramos no campo dos amores e dos relacionamentos, será que meu
amigo está errado em sua radicalidade?
Parece que vivemos em um mundo que temos pânico do ser
comum, ao mesmo tempo em que as coisas mais simples ganham status de
originalidade. Me lembrei dessa matéria que outro amigo postou sobre um local
sem rede wi-fi que de repente se tornou especial para a estratégia de marketing
da kit-kat.
O psicanalista Joel Birman
certa vez disse que o processo analítico é quando deixamos de pensar que
somos especiais e vemos que somos todos ridículos. Penso nisso quando a
associação livre que nos torna sujeitos e faz aparecer o sujeito do
inconsciente nos faz perder toda a lógica cartesiana elaborada do mundo e ali
nos vemos com a “sujeira” que estava debaixo do tapete: nossas raivas,
mesquinharias, desejos, amores, tristezas, medos, invejas, culpas e tantas
outras coisas e como qualquer mortal. E não há nada de especial nisso.
Quando alguém afirma que sou especial me dá um certo medo. As
pessoas podem criar essa categoria para a qual há um conjunto de regras para
serem seguidos que outras pessoas fora dessa caixinha de especialidades não
pode. Fulano me maltratou, me tratou como o cocô do cavalo do bandido, mas você
Odilon, não pode porque é especial. É essa a crueldade do "ser especial"...você entra numa redoma de idealização e a pessoa joga a culpa para cima de você em função desse rótulo e impede qualquer discussão de forma realmente humana , isto é, fora de idealizações, de igual para igual. É um amor narcísico no qual só a ideia que a própria pessoa cria de você conta e não quem realmente você é interessa. Imagino Narciso no lago olhando a imagem de um outro amado que na verdade é ele mesmo.
Claro que dentro dos relacionamentos amorosos a minha ideia
de “não ser especial” justifica toda a sorte de impropérios que você pode
dirigir ao outro. Eu sei que por muitas vezes já manifestei raiva, ódio e
menosprezo com aqueles que amo. Mas nesses casos o que cabe em mim é julgar
eticamente o que eu faço como um ser humano mortal como qualquer outro e não
como um cara que tinha a carteirinha do “acesso vip do coração do outro” e de
repente a perde diante de uma falta, por mais grave que ela seja.
Junto com o “ser especial” vem as idealizações. Elas são
frutos do investimento que fazemos. Por isso seria um absurdo eu falar que não
tem essa de “ser especial” porque não faço investimentos amorosos e/ou sexuais.
Claro que os faço: sejam com meus livros, com as minhas roupas, minhas ideias
ou as pessoas a minha volta. Não julgo isso moralmente enquanto não prejudico a
relação com o outro. O que é importante, sempre, é saber que posso fazer sim as
minhas idealizações, escolhas e investimentos. E isso se dá não porque eu e o
outros somos especiais, mas sim porque nos amamos, com todo tipo de qualidade e
defeitos.
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